O Viajante - Capítulo LXII - Mikael - Maio de 1973

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Depois de Samuel partir com o Wolfgang e minha mãe ir com o Levi, foi minha vez de pegar o ônibus para casa.

Durante o trajeto, o meu corpo começou a relaxar e meus músculos doíam. Algumas pessoas me olhavam. Apesar de ter lavado o ferimento, causado pelo tiro de raspão, ele não parou de sangrar tão cedo e estava coberto por cascas de sangue seco. Eu também não devia estar com boa aparência, a julgar pelo cansaço que sentia.
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Ao chegar na rua da minha casa, não vi nenhuma movimentação no portão, tudo parecia discreto e normal. Isso me aliviou.

Abri o portão, atravessei e entrei na residência. Me deparei com Samuel, sentado no chão da sala e minha mãe  estava na cozinha conversando com o Wolfgang, a Isabelle e o Levi. Aparentemente, a jornalista trouxe uma garrafa de café e alguns copos.

Foi só naquele momento que me dei conta de que minha família estava perto de mim. Eu não precisava mais me preocupar com eles sob as malditas garras do Isaac.

Os olhos verdes, da minha mãe, me encontraram, mas quem foi até mim foi o Samuel, que levantou do chão, num salto, correu e me abraçou.

Agachei, para equiparar nossas alturas, e o envolvi com o meu único braço bom. Me contive para não deixar minhas lágrimas caírem na frente dele. Durante todo esse tempo, pensar que Isaac poderia fazer o que quisesse com o Samuel, me matava. E vê-lo seguro trazia uma parte de mim de volta.

Quando meu irmão se afastou, me olhou com lágrimas nos olhos verdes que herdou da nossa mãe.

— Você não vai mais embora, vai? — O Samuel perguntou com sua ingenuidade infantil.

— Não, claro que não! — Sorri para ele.

— O pai te machucou muito na cabeça... — Samuca acenou para o corte na minha têmpora.

— Não se preocupa, vai melhorar logo. Ele não vai mais me machucar. E nem vai machucar você.

— Ele... — Meu irmão olhou para os pés e depois voltou a me encarar. — Falou coisas horríveis de você pra mim.

— Não precisa mais pensar nisso, Samuca.

— Disse que você me largou porque é um covarde e que não ia mais voltar... — Os olhos da criança voltaram a marejar e o nojo que eu sentia do Isaac só aumentou.

— Mas eu voltei pra te buscar.

— Voltou...

— Cumpri a minha promessa.

Os olhos tristes do meu irmão deram lugar a um brilho de paz. Seus lábios formaram um sorriso tênue que se acentuou. Era um alívio ver o Samuel sorrir.

— Você compra uma bola nova pra gente jogar futebol? — Pediu tão descaradamente que me arrancou uma risada. Apesar de tudo o que aconteceu, ele ainda era uma criança e tudo o que queria era brincar livremente.

— Compro. Mas não consigo jogar futebol por agora com esse braço engessado.

— Você e seus amigos tão todos machucados. — Ele observou. — O que aconteceu?

— Depois eu te conto. — Eu não sabia o que dizer, mas certamente não revelaria que foi o Levi que me feriu. Nem mesmo dava para explicar o contexto de todo o caos que vivemos.

Sara se aproximou de nós dois. Os seus olhos estavam inchados pelo choro intenso que a acometeu no bar. Ela ficou apavorada por eu enfrentar o Isaac e destruída, quando voltei, ao perceber que o marido atirou em mim.

Me afastei do Samuel e arrumei a postura. Minha mãe sorriu para mim com um brilho no olhar que era raro.

— Acho que vocês precisam comer e descansar. — Sara acariciou o meu rosto, com uma das mãos e, com a outra, tocou os cabelos do Samuel.

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