Eu estava voltando das aulas do professor Marcel Desrosier, um imigrante francês que lecionava na mesma faculdade que o meu pai. Marcel era poliglota, além do francês, falava português, inglês, alemão e russo.
Meu pai o pagava para dar aulas de Inglês e Francês para mim. Mounsieur Desrosier ensinava os filhos dos colegas como uma forma de aumentar sua renda. Marcel era muito chato. Achava tudo ruim e se nossa pronúncia não fosse perfeita, dizia que brasileiros não aprendem nada direito. Bem que meu pai dizia que a única coisa boa dos encontros na casa do francês eram os vinhos que ele servia.
Eu estava no assento ao lado do corredor, com uma bolsa com livros no meu colo. O banco ao meu lado, da janela do ônibus, estava vazio. Vislumbrei a rua pela vidro enquanto bocejava devido ao cansaço. E eu ainda teria que ir para o colégio à tarde.
Ouvi um som alto. Tão alto que pareceu invadir a minha cabeça. Senti minha pele ser perfurada pelo vidro da janela e senti um forte impacto contra a minha cabeça.
Tudo se desfez ao meu redor e desapareceu.
Abri os olhos, com o peito ofegante. Sempre que eu dormia, sonhava com a lembrança do acidente. Eu já devia ter me acostumado, mas o medo ainda me atormentava ao acordar.
Me sentei na cama e olhei para a mesa de cabeceira. O relógio marcava 6h da manhã, ainda era cedo. Senti uma cólica em meu ventre e uma umidade entre minhas pernas. Abaixei o rosto e vi uma mancha vermelha, em minha região íntima, nos shorts brancos do pijama. O pequeno calendário, ao lado do relógio, denunciava o dia 19 de abril. Era a época que minha menstruação costumava descer.
Suspirei aliviada. Eu não engravidei do Eduardo naquela transa inconsequente que tivemos. Decidi usar aquele susto para dar uma lição em mim mesma e não cometer mais o mesmo erro. Nada me prendia ao Eduardo, não tinha motivos para eu ser tão idiota e ir para a cama com ele de novo.
Meu estômago estava gelado. Aquele seria o dia do encontro com os fundadores do Vozes do Povo. Se o DOPS¹ descobrisse o evento, estaríamos todos mortos.
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Passei o dia inteiro apreensiva. Além do trabalho como detetive e das colunas dos Vozes do Povo, eu estava tentando documentar tudo o que aconteceu na rua 18. Era difícil me concentrar estando tão nervosa, mas consegui datilografar algumas folhas de ofício.
Li os documentos do que intitulei Arquivo da Rua 18. Narrei tudo o que aconteceu desde que o Mikael e o Wolfgang me procuraram. Nitidamente, via-se que algo tinha alterado o passado e que o Wolfgang era o gatilho daquela história toda, mas nem ele mesmo entendia o que estava acontecendo.
Foi difícil escrever tudo aquilo. Quando eu me lembrava dos acontecimentos no ônibus, sentia náusea. Precisei abrir a janela do apartamento e tomar ar para não acabar vomitando sobre a escrivaninha.
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Eu precisava mascarar o meu pavor de ir ao evento junto da Catarina. Queria parecer forte e me vesti com uma camisa preta e calças da mesma cor. Coloquei um par de tênis, preocupada que eu pudesse ter que correr. O revólver estava na minha bolsa e nunca tive tanto medo de precisar usar a arma.
Dirigi até o prédio antigo em que ficava a sede do jornal e Catarina me deu carona até o local do encontro com o carro dela.
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Chegamos em uma chácara afastada da cidade. Fui bem recebida por Januário, o dono da propriedade. Além dos fundadores, vários estudantes estavam presentes.
Meu coração estava acelerado e minhas mãos suavam. Recusei o vinho que ofereciam, assim como os pedaços de queijo que serviam. Tudo o que eu conseguia fazer era ficar sentada em um sofá, roendo o canto das unhas. Eu arrancava pedaços das cutículas com meus dentes e, em alguns dedos, isso fazia sangrar. Era um movimento compulsivo, frenético, impossível de ser interrompido.
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Filhos da Entropia
Mystery / ThrillerNo ano 1973, vivendo na época da Ditadura Militar, Wolfgang era um jovem brasileiro pobre, gay, filho de um imigrante austríaco, órfã de mãe e sem quase nenhuma perspectiva de vida. Trabalhando em um bar péssimo, ele vai vivendo os dias entre incont...