O Viajante - Capítulo XXVIII - Wolfgang - Abril de 1973

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O bar estava cheio naquela tarde de sábado. Após servir todos os fregueses, me apoiei no balcão, acendi um cigarro e me afundei no meu abismo de pensamentos

Aqueles dias estavam sendo perturbadores para mim. Toda a história envolvendo o ônibus e o cadáver do Mikael me atormentava.

— Grilo, telefone! — Silva gritou da cozinha. Caminhei até o cômodo, carregando o cigarro entre os meus dedos enquanto as cinzas caíam no chão. O patrão estava fritando toucinhos quando entrei na cozinha e o cheiro de fritura impregnava o lugar.

Peguei o telefone e o coloquei contra a orelha.

— Alô.

— Oi, é a Isabelle.

— Oi… — A minha falta de tato social apareceu com o seu uivo assustador, pronta para me causar constrangimentos.

— Você e o Mikael podem ir na minha casa amanhã? Eu consegui a câmera e o Levi me disse que pegou umas ferramentas emprestadas na oficina.

Percebi que eu estava tremendo.

— Acho que sim… — Eu não podia responder pelo Mikael. — Eu consigo… É. Consigo. — Gaguejei nervosamente. Falar ao telefone era uma habilidade que eu não tinha.

Houve um silêncio incômodo do outro lado da linha, o que só fez aumentar o constrangimento da minha inaptidão social.

— Wolfgang…

— Oi?

E mais silêncio.

— Tá, amanhã a gente conversa melhor. — A jornalista falou com certa pressa. — Tchau.

— Tchau. — Isabelle desligou o telefone. Todos estavam estranhos desde o que aconteceu no ônibus acidentado. O Mikael também estava mais calado. Não era para menos. Ele se viu morto e até o momento, ninguém conseguia explicar aquilo.

Eu não pude pensar muito, pois Silva logo fez questão de me trazer de volta com seus gritos. Trabalhei até 8h da noite e, finalmente, pude ir embora.

Estava chovendo quando saí. O casaco, que deveria me proteger do frio, ficou encharcado e eu me senti congelando dentro dele.

Quando cheguei em casa, meu pai tinha acabado de esquentar a água para eu tomar banho. Ele deduziu que eu pegaria uma baita chuva. Essas atitudes faziam eu reconhecê-lo como um pai inigualável. Nunca conheci ninguém com uma figura paterna tão admirável quanto o Wilhelm.

O Mikael estava no meu quarto. Nos momentos em que ele estava em casa, geralmente ficava lá, olhando os classificados do jornal, em busca de uma casa para alugar. O enfermeiro era uma pessoa discreta.

Me apressei em tomar banho com a água esquentada e vestir roupas secas. Jantei ovo frito com pão francês dormido depois do banho e ouvi a novela do rádio junto com o meu pai. Essa era a minha rotina noturna de todos os dias.

Estava perto da meia-noite quando resolvi ir me deitar. Encontrei o Mikael acordado, ele estava sentado no colchão e recostado na minha cama, enquanto anotava alguma coisa em sua agenda de finanças.

Em silêncio, andei até a minha cama e me deitei nela, com a barriga virada para cima e os olhos fixos no teto. Senti inquietação. Essa sensação vinha todas as noites desde que abriguei o loiro em minha casa. Junto dela, eu também sentia medo. O dia seguinte era domingo e a Norma costumava visitar o meu pai no primeiro dia da semana. Era apavorante pensar na possibilidade daquela víbora consumar sua ameaça.

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