O Viajante - Capítulo XXXIII - Wolfgang - Abril de 1973

19 6 59
                                    

O Mikael era um babaca.

Depois do que aconteceu entre a gente, ele ficou estranho e passou a me evitar. Ele já estava me evitando antes, na verdade. Então nós transamos e dormimos juntos. No dia seguinte, o enfermeiro maldito começou a me responder de forma seca e curta e fugir de mim como um rato foge de um gato. Em alguns momentos, ele até me ignorou ativamente.

Mas não importava. Eu não era fraco o suficiente para remoer aquela idiotice. Nem era a primeira vez que alguém agia daquele jeito comigo.

Evitar pensar no Mikael me levava a outro local sombrio da minha mente: a voz feminina que ouvi na rua 18 e os cadáveres no ônibus.

O mero pensamento breve, sobre a voz que me chamou, fez com que eu sentisse um aperto no peito. Me esquivei dessa recordação e caí no vale das lembranças dos mortos. Eram tão vívidas que eu ainda podia sentir o cadáver da Isabelle em cima de mim, com o sangue escorrendo pela boca.

Eu estava lavando as louças no bar. Cada lembrança fazia eu colocar mais força na esponja enquanto lavava os copos

Até que senti uma dor brusca e aguda.

Em meio à espuma, vi sangue e o copo americano partido no meio.

— Que porra! — Esbravejei alto, apertando o corte em meu polegar direito com a outra mão. — Silva! — Gritei o patrão. — CARALHO, SILVA! — E berrei mais alto. Meu humor estava péssimo.

O homem entrou na cozinha e viu o sangue vazando do meu corte.

— Cacete, Grilo. Se cortou feio. — O dono do bar disse com a voz estridente de sempre. — Lava essa merda e faz um curativo.

— Eu vou pra casa.

— Um caralho que vai. Faz o que tô falando!

Lavei o corte na pia, usando água e sabão, peguei o pano de prato menos sujo e o apertei contra o corte

Por mais que eu pressionasse, continuava sangrando. Pela primeira vez, vi o meu chefe com um olhar preocupado sobre mim. Sentei em uma cadeira na cozinha e o patrão ficou de pé, olhando.

— Moleque, isso não tá normal. Deixa eu ver esse dedo. — Sem pedir licença, Silva afastou o pano de prato que eu usava para pressionar o ferimento. — Tá sangrando pra cacete.

Eu estava ficando tonto. O sangue já tinha deixado o pano de prato todo vermelho e algumas pequenas poças sobre a madeira da mesa.

— Vou ligar pro seu pai.

— Não, Silva. — Sussurrei em voz baixa.

— Então, vou te levar pra sua casa. Você tá sem cor, eu nunca te vi assim, Grilo. — Ele pegou o meu braço e passou ao redor do seu ombro, saiu da cozinha, e depois do bar. Durante todo o curto percurso, Silva me manteve apoiado.

O patrão me levou até o seu Fusca e deu partida no carro. Era a primeira vez que ele me ajudava daquele jeito. Eu devia estar péssimo mesmo.

Chegamos muito rápido em casa, o Silva correu com o carro. Ele estacionou o Fusca, com pressa, me ajudou a sair do veículo e pediu a minha chave para abrir a casa. A porta da frente estava destrancada, o filho da puta do Mikael estava lá.

Quando entramos, o enfermeiro estava limpando a mesa de centro. Ele arregalou os olhos ao me ver e se levantou.

— O que aconteceu? — Perguntou ao se aproximar de mim e do Silva.

— Vai cuidar da sua vida. — Respondi de forma ríspida.

— Que é isso, Grilo? Esse daí não é seu amigo? — O patrão indagou. — Ele cortou o dedo em um caco de vidro e não para de sangrar.

Filhos da EntropiaOnde histórias criam vida. Descubra agora