O Viajante - Capítulo XXXVIII - Wolfgang - Maio de 1973

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Eu não dormi naquela noite. 

Os gritos da minha mãe não saíam da minha cabeça. Entrei, novamente, naquele estado de distanciamento com o mundo ao redor. Estava difícil prestar atenção no que acontecia, pois, as recordações do que ouvi me puxavam de volta às memórias. Eu havia combinado de passar na casa do Mikael antes de ir para o bar, mas não consegui. 

Estava impossível voltar à realidade.

Fui trabalhar imerso nesse transe que me ocorria após momentos extremos. Para eu conseguir entender o que Silva mandava, ele precisava repetir algumas vezes. O patrão não era o homem mais paciente do mundo, o que rendeu alguns gritos por parte do dono do bar.

Eu precisava descobrir o que aconteceu.

A razão me dizia para esperar e conversar com eles antes de tomar qualquer decisão. Era isso que uma pessoa sábia faria. 

Entretanto, minha atenção estava toda voltada para os gritos desesperados da Rosa. Eu queria entender aquela lembrança ao passo que desejava arrancá-la da minha memória.

— Silva, já volto. — Falei em voz alta e saí  do bar em passos rápidos. Não ouvi o que o patrão respondeu. 

Ao menos eu deveria conversar com o Mikael antes, ele era uma das poucas pessoas capazes de driblar a minha teimosia. 

Nada adiantava. Nenhum pensamento me parou. 

Peguei o ônibus e fiz o trajeto que costumava percorrer para ir à casa da Isabelle. Esse era o único percurso até a rua 18 que eu conhecia, eu era péssimo traçando rotas novas. 

Desci no quarteirão da jornalista e fui, metodicamente, até o seu prédio e, de lá, segui para a rua 18. Um caminho decorado, tal qual um protocolo. 

Por todo o percurso, eu tremia. A minha racionalidade gritava para que eu não me aventurasse ali sozinho. 

O rosto da Rosa, com os traços que herdei e com olhar aliviado, vieram à mente. Também me lembrei de seu rosto na fotografia com o meu pai, em que sorria, vestida de noiva, e segurava um buquê de flores, olhando para o marido com felicidade. 

E então surgiram os gritos desesperados em minha memória e a convicção de que precisava continuar.

Virei a esquina da tal rua e me aproximei, em passos apressados, até a calçada da Alves Discos. 

O céu ensolarado de umas 10h da manhã escureceu, coberto pelo esplendor que eu tanto conhecia e ofuscado pela névoa. O calor do fim da manhã diminuiu e o som do tráfego foi substituído pelo contínuo e inabalável ruído irritante.

No meio da rua, estava o ônibus tombado. Eu não queria entrar ali de novo, não suportava a ideia de ver os cadáveres dos meus amigos. 

Fiquei cego pelas lágrimas, era sempre sofrido estar ali. Meu peito parecia prestes a explodir. 

Os gritos da minha mãe ecoavam tão fortemente em minha cabeça que comecei a questionar se eles também vinham de fora. 

Cobri os meus ouvidos com a mão e tive a certeza que eles só vinham das lembranças. As recordações estavam me deixando tonto e atordoado. 

O mundo ao meu redor girou e a dor e o sofrimento que eu sentia no peito eram tão intensos, que perdi as forças e caí de joelhos.

Apesar da intensidade do que eu sentia, eu não gritei, apenas rangi os meus dentes e grunhi. As lágrimas escorriam pelo meu queixo e pingavam no asfalto. Minhas mãos ainda estavam sobre as orelhas, embora isso não fizesse sentido algum. 

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