O Viajante - Capítulo XXII - Isabelle - Abril de 1973

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Ofereci-me para ajudar naquele coletivo acadêmico. Tratava-se de um grupo que defendia democracia a todo custo. Essa visão era compatível com o que eu acreditava. Por vezes, o coletivo apoiava o uso da força bruta como forma de luta pela democracia. Desde o desaparecimento e provável falecimento do meu pai, por vezes me peguei pensando que de fato, a única saída era usar a brutalidade contra a ditadura.

Estávamos em um um bairro no extremo sul da cidade, distribuindo cestas básicas. Usamos uma rua vazia, cercada por terrenos baldios para realizar a distribuição. Não tinha asfalto naquele bairro, o chão era de terra batida. Junto das cestas básicas, o coletivo também estava entregando panfletos que chamavam a atenção para o para o excesso de brutalidade militar na ditadura que vivíamos. 

Eu só estava lá para ajudar e colher informações e não fazia parte do coletivo, embora gostasse do trabalho que faziam. Juntei-me a eles com a função de jornalista, para que eu pudesse publicar, no Vozes do Povo, a realidade que a imprensa comum - que era uma ávida apoiadora da ditadura - tentava esconder.

Eu estava em uma barraca, entregando cestas básicas, em caixas de papelão, para as pessoas. Dentro das caixas tinham duas latas de óleo de soja, dois sacos de arroz, dois sacos de feijão, um saco pequeno de farinha de trigo, um de pó de café e um saco de bolachas.

Uma senhora de olhos marejados se aproximou e recebeu uma caixa das minhas mãos. Entreguei um panfleto do Coletivo para ela. A mulher olhou para o papel e voltou a me encarar.

— Obrigada, minha filha. Mas… Isso resolve alguma coisa? — Perguntou com seus olhos marejados. Os cabelos grisalhos estavam presos em um coque. A idade marcava o seu rosto queimado pelo sol.

— Estamos tentando, senhora. Lutando contra essa desigualdade. Tentando trazer a democracia de volta.

— Minha filha… Ninguém nunca se importou com gente como eu.

— Eu tô aqui pra te ouvir. — Respondi, titubeando. — Como a senhora se chama?

— Margarida.

— As coisas tão difíceis, não é, dona Margarida?

— Sempre foram, menina.

— A senhora não recebe nenhuma ajuda?

— Recebo de uns vizinhos, da igreja, de vocês… — Os olhos da Margarida eram tristes. — Tenho cinco filhos. Dois moram comigo, um deles tem problema nas pernas. Também tenho três netos que moram na minha casa. São crianças…

Senti enorme triste ao ouvir o que ela dizia.

— Seus netos vão pra escola?

— Denise, a mais nova, vai. O Carlos e o Aldemar não. Eles trabalham.

— Qual a idade dos meninos?

— A Denise tem 7 anos. O Carlos tem… 8. — Margarida hesitou, tentando se lembrar da idade dos netos. — O Aldemar tem 10…

Ouvi um som alto vindo do fim da rua. Virei o meu rosto para olhar e vi uma viatura da polícia atropelando uma das barracas. Atrás dela, tinha outra viatura. Os policiais saíram dos carros e começaram a gritar algo que não entendi. Esse movimento gerou um enorme tumulto nas pessoas que estavam ali, tanto os membros do coletivo, como os moradores.

Logo, uma correria em nossa direção começou. Segurei o pulso da dona Margarida.

— Vem, dona Margarida, corre! — Puxei a senhora pelo braço.

— Eu não consigo, menina!

— Vem! Corre!

A senhora tentou correr, mas seus passos eram lentos. Ela tropeçou nos próprios pés. Com a multidão se aproximando, desesperadamente, de nós, passei o braço da idosa ao redor do ombro e comecei a correr. Foi doloroso ver a Margarida soltar a caixa com a cesta básica e a deixar para trás.

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