O Viajante - Capítulo LI - Wolfgang - ?

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Imagens, sons e sensações invadiam a minha cabeça e eu sentia pequenos choques, dentro do meu crânio, a cada nova informação.

Apesar da neblina escura e passos trôpegos, eu sabia exatamente onde eu estava e, de algum modo, onde minha mãe se encontrava.

Tinha várias delas, mas eu seguia aquela que estava morrendo, que abriu a mão da própria vida por mim.

Vaguei até o terreno baldio em que a Rosa se escondeu. Não era muito longe da minha casa, ficava a três ruas de lá.

Adentrei o matagal e senti as plantas espinhosas ferirem a minha pele, esbarrei no mato alto e tropecei inúmeras vezes, porém aquilo não importava. Eu precisava encontrar a minha mãe.

- Wolfgang. - Ouvi sua voz e a segui, até encontrá-la caída de bruços no chão.

Corri, o mais rápido que pude, em sua direção e a peguei em seus braços. Ao virá-la de barriga para cima, vi seu rosto totalmente manchado pelo sangue, que ainda escorria do nariz. Ela estava pálida e abatida, seus olhos estavam quase fechados.

Vê-la daquele jeito me causou dor e não consegui conter o choro. Eu queria a pegar nos braços, a levar para casa e esperar o meu pai chegar.

Como eu queria a minha mãe perto de mim e ao lado do Wilhelm. Mesmo que eu tenha passado uma vida sem ela, ao ver seus olhos, que eram idênticos aos meus, senti um profundo amor, tão intenso quanto o que eu carregava pelo meu pai.

Minha mãe estava sangrando, caída no chão em meio à um terreno baldio. Queria tirá-la dali e a levar para a nossa casa.

- Meu anjo... - Sua voz saiu fraca. - É tão bom te ver bem.

- Mãe, vem, eu vou te levar pra casa. - Eu disse com a voz embargada.

- Não, Wolfgang. - As lágrimas escorreram de seus olhos. - Eu não quero morrer ali.

Senti uma pressão no meu peito, como se tivesse levado um soco forte ali. Minhas vísceras pareciam comprimidas e o meu corpo ardia em sofrimento. Mordi os meu lábios, como se a dor física pudesse acalentar aquele despero esmagador que eu sentia.

- Mãe, não... - Sussurrei após soltar os dentes dos meus lábios e sentir o gosto de sangue em minha boca. - Não...

- Eu amo você, Wolfgang. - Minha mãe sorriu. - Não esquece isso, eu te amo.

- Não vai embora, mãe. - Implorei. Eu queria que alguém me ouvisse e impedisse aquele destino. Meu desespero tinha de valer alguma coisa. - Eu não quero viver longe da senhora. O pai... Ele tá sofrendo tanto...

- Eu amo o seu pai, meu anjo. Ele salvou a minha vida... - O som da sua voz estava ficando cada vez mais baixo. - A gente teve você... Eu tive um filho com o meu amor... - A sua respiração começou a se intensificar. - E eu não ia suportar perder você...

- Fica, mãe. Muda isso, fica com o pai. - Mais dor me acometeu. Que grande desgraça eu era na vida daqueles dois, por minha causa, o meu pai viveu uma vida infeliz sem esposa.

- Wolfgang! - Mesmo em sussurros convalescentes, Rosa pareceu brava e me intimidou. - Eu tô sentindo muita dor... - Procurei a mão dela e a segurei. Sua pele estava fria e úmida.

- Eu não consigo falar muito. Então, me escuta... - Seus dedos apertaram a minha mão com firmeza. - Eu dei a minha vida por você... Porque eu quis. - O barulho do ar entrando em seus pulmões estava alto e angustiante. - Porque você... É o meu filho e eu te amo mais do que tudo. O seu pai também te ama... Você é tudo pra gente. Nossa... - Ela pareceu se engasgar e tossiu, porém não parou de falar. - Vida.

- Mãe, eu não sou um bom filho, não sou uma pessoa que vale a pena...

- Você é parte de mim, parte do seu pai.

Eu estava engasgado nos soluços do meu choro, não consegui dizer nada, só ser mutilado pelo o que sentia.

- Ama a si mesmo em meu nome... E em nome do seu pai.

Aquelas palavras me perfuraram como lâminas e atingiram o meu coração. Apesar de estar experimentando uma dor sem precedentes, algo pesado, dentro de mim, se desfez, deixando um espeaço de alívio em meu cerne.

- Eu te amo, mãe. - Acariciei o seu rosto com a minha mão livre e meus dedos foram manchados pelo sangue dela.

- Aproveita o tempo... Que te resta. Ama o nosso Willi, ama... Aquele rapaz. - Me assustei ao perceber que ela sabia sobre o Mikael. Ela sabia e, ainda assim, não me odiava. - E não esquece... Nunca... Nunca... Que você é tudo pra mim.

Assim que ela se calou, seus olhos se moveram para cima, deixando apenas a parte branca visível.

- Mãe! - O vômito, provocado pelo pânico, veio até a minha garganta e eu precisei o engolir. - Mãe, volta! Acorda!

Ela não reagiu. A respiração, que estava curta e ofegante, parou e seus dedos soltaram a minha mão.

- Volta, mãe. Por favor, volta! - Eu estava implorando e ela não me ouvia. - MÃE! - Gritei com todas as forças dos meus pulmões. - MÃE, VOLTA! FICA COMIGO!

Uma manche carmesim, parecida com uma queimadura, surgiu na seu nariz e, rapidamente, se espalhou pelo rosto.

- O que é isso? Para. Para com isso, por favor. Para, para!

A pele avermelhada tinha uma textura ressecada. A mancha tomou toda a pele do seu corpo e ver aquela cena me fez querer morrer junto com a Rosa, apenas para não assistir aquele momento terrível.

Fiquei sem palavras, elas entalaram em minha garganta e eu não conseguia mais gritar ou implorar, meu corpo apenas tremia violentamente, sem reagir.

Vi a pele, tomada pela vermelhidão e textura ressecada, se desprender de seus músculos, relevando a carne por debaixo dela.

O vômito subiu de novo, mais uma vez, engoli o líquido ácido e o senti descer queimando. Afundei os dedos na terra do chão do terreno baldio, com tanta força, que as minhas unhas se feriram.

Os músculos dela atrofiaram, ganhando uma coloração cinzenta e, aos poucos, desapareceram, relevando os ossos brancos.

Mordi os lábios de novo, com tamanha força que eles rasgaram e o sangue jorrou de um corte profundo que abri com os dentes no interior da boca.

Os ossos, aos poucos, esfarelaram e viraram pó. Nada mais restou em meu colo, até suas roupas e sua aliança se desfizeram e sumiram, como a existência da minha mãe tivesse sido apagada da memória do mundo.

Em meio a paralisia de horror e a autodestruição, abri a minha boca...

E gritei. Um grito rouco, gutural e primitivo, como de um homem que não aprendeu a falar, expressando dor.

Tão alto que reverberou junto do guincho constante daquele inferno. Um vento forte, vindo de todos os lados, soprou, arrancando a vegetação alta do terreno e a levando embora. O horizonte foi ofuscado pela poeira e entulhos levantados pelo vento e eu era a única criatura imune à fúria do ventania.

O furacão que se aproximava era a minha dor. O limbo esverdeado era meu e ele estava colapsando junto comigo.

Filhos da EntropiaOnde histórias criam vida. Descubra agora