Parei diante do ônibus tombado e fitei a escuridão dentro dele pelo para-brisa. A todo instante, eu precisava secar as lágrimas dos meus olhos.
Eu não conseguia parar de pensar na lembrança daquela voz feminina e isso doía mais do que tudo.
Senti uma mão sobre o meu ombro. Olhei para trás e vi o Mikael. O cintilar esverdeado do céu o iluminava. Meu pranto continuava a escorrer por minhas bochechas enquanto nos olhávamos.
— Sai de perto do ônibus, Grilo. — Levi estava a poucos metros do Mikael. Sua voz ecoou por todo espaço, como todos os sons naquela manifestação estranha da rua 18. — Vou tentar aumentar o espaço pra gente passar.
— Você consegue sozinho? — Mikael indagou.
— Consigo. Eu sou forte. — O mecânico falou em um misto de sarcasmo e nervosismo. Eu fiz o que ele pediu e me afastei do veículo.
— Espera um pouco. — Isabelle disse enquanto se aproximava do ônibus. Ela fotografou o enorme automóvel. — Mikael, 4.ª Foto: O ônibus acidentado. Tirada durante o fenômeno da rua 18 no dia 15 de abril de 1973.
O enfermeiro anotou o que ela disse. A mulher se afastou da lataria tombada, deixando o caminho livre para o Levi.
O mecânico se aproximou do ônibus, segurou o cabo da marreta com ambas as mãos e afastou a cabeça da ferramenta do seu ombro.
Após um recuo de um passo, Levi bateu a marreta com tudo na divisão do para-brisa com a parte que deveria ser o teto. Como o veículo estava tombado, o seu teto estava à esquerda do mecânico.
O som da pancada ecoou, amplificado, para todos os lados e meus ouvidos doeram. Meu corpo desejou fugir, como um rato, perante aquele barulho, porém eu apenas cobri minhas orelhas com as mãos.
No primeiro golpe, a lataria amassou apenas discretamente e trincou as partes de vidro, do para-brisa, que permaneciam intactas.
Levi arfou, em uma respiração alta, e bateu a marreta no mesmo local que antes. O vidro trincado se soltou e os cacos caíram no chão, resplandecendo sob a luz no céu como pequenas pedrinhas cintilantes. Nesse momento, o mecânico recuou alguns passos para não ser ferido pelo vidro. A lataria entortou um pouco mais para esquerda com o segundo golpe e o rapaz parou para tomar um pouco de ar.
A cada pancada, meus ouvidos doíam, por mais que eu os cobrisse com as mãos. Senti uma agitação intensa no meu peito junto do excruciante sofrimento que me atingia.
Após tomar fôlego, o Levi acertou a marreta na lataria à sua esquerda várias vezes. Os estalos altos me atordoaram.
A passagem do para-brisa tinha sido alargada pelos golpes do mecânico.
— Vamos entrar! — Ele disse, ofegante. — Que eu abro o caminho. — E se inclinou, entrando no ônibus por aquela abertura improvisada.
Isabelle tomou a frente. A jornalista caminhou até a passagem deformada do para-brisa, se agachou e entrou por ela. Mikael começou a andar e me olhou por cima do ombro. Meus pés não queriam me obedecer. Eu estava paralisado, tremendo dos pés à cabeça e chorando.
— Você não vem? — Ele indagou.
Eu queria gritar que não iria entrar no ônibus. Meu desejo era berrar até a minha garganta sangrar, colocando para fora todo aquele medo e dor.
Subitamente, uma brisa fria começou a soprar, fazendo a neblina esvoaçar como cortinas sopradas pelo vento.
— Tá ventando? — O enfermeiro olhou em volta. Pude notar o olhar curioso da Isabelle pela abertura frontal da lataria do ônibus.
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Filhos da Entropia
Mistério / SuspenseNo ano 1973, vivendo na época da Ditadura Militar, Wolfgang era um jovem brasileiro pobre, gay, filho de um imigrante austríaco, órfã de mãe e sem quase nenhuma perspectiva de vida. Trabalhando em um bar péssimo, ele vai vivendo os dias entre incont...