Capítulo VIII

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 Os dois garotos restantes permaneciam estáticos no refeitório. Uma fricção intensa se punha entre eles como uma mortalha, conforme o desconforto da solidão os angustiava cada vez mais. Contudo, ainda que desconcertados e dispersos em seus próprios temores, suas mãos permaneciam entrelaçadas como se fossem uma só. Não é como se pudessem ter o luxo de se desunir, afinal.

— Ei, Felipe!

Andrade demorou algum tempo para sair de seu transe e perceber o outro.

— Oi?

— Você bebeu alguma coisa desde o início da noite?

— Ah, não, não. A comida e os bebedouros não são confiáveis.

— Você parece cansado. Eu não tenho comida, mas... — Tirou, de seu cinto, uma pequena garrafa d'água preta, similar a um cantil. — Acho que beber um pouco de água pode fazer com que você se sinta melhor.

— Obrigado, mas não precisa — Sorriu de relance, suas bochechas corando por um breve momento. — A Anna pode ter envenenado essa água depois de ter te sequestrado.

— Bom, eu acho que não. Até porque eu já dei um gole ou dois e tô aqui, inteiro e vivo — Igualmente sorriu de canto de boca, mas num tom levemente provocativo.

Felipe viu-se novamente absorto nos olhos de Loch. Mordeu os lábios.

— Tá bom, então — Pegou o objeto, encaixando-o delicadamente em sua boca.

Enquanto seus dentes tateavam com calma a superfície rija do bico, atraiu aquele líquido tão vital à sua garganta, sentindo quase que uma queimação conforme repetia o movimento cíclico e maquinal de absorção.

Enfim, parou, dispensando a garrafa de seu rosto enquanto, com o braço, limpava as gotas reminiscentes de sua face. Sentia-se satisfeito e, ultimamente, mais vivo.

— Será que a Serena e a Verônica tão bem? — perguntou, após recompor-se de seus goles. — Acho que ouvi um grito, agora há pouco.

— Eu não sei. O Rodrigo é muito estranho, sabe?

— Estranho? Em que sentido?

— Depois de nós termos aquela conversa, antes da morte do Diogo, eu saí e fui refrescar um pouco, passear pela escola, procurar uma forma de fugir. E aí eu vi o Rodrigo num dos corredores.

— E o que ele disse?

— Nada. Ele nem me viu. Mas eu vi ele. E ele tava no corpo da Priscila. Roubando algo.

Algo?

— Pelo barulho, pareciam ser umas chaves.

— Chaves... — Com o indicador, acariciou o próprio queixo, intrigado. — Claro. Acho que a Marilúcia e a Priscila tinham umas chaves, que dão acesso àquelas salas trancadas. Se lembra?

— Aquelas que o Diogo tentou arrombar e não conseguiu?

— Sim. São só algumas salas, acho que três: a sala da Marilúcia, o porão e a sala dos professores.

— Ah, sim... E acho que faz sentido, porque, depois de ter pego as chaves, ele foi pro terceiro andar, onde fica a sala dos professores.

— E depois?

— Eu não sei, não vi. Mas ele não deve ter achado nada, em nenhuma das salas. Se tivesse, já teria usado.

Uma pausa horripilante. Três tiros foram ouvidos, do banheiro feminino.

Victor agarrou-se imediatamente no braço de Felipe, tremulando de medo. Andrade, no entanto, consumiu-se unicamente pela preocupação, levantando de seu banco determinado a correr e envolver-se em toda a confusão — nem que isso custasse a sua vida.

— Felipe, não! — gritou. — É muito perigoso!

— Me deixa! — gemeu em inconformidade, enquanto tentava veementemente puxar seu braço para fora da teia do outro menino. Porém, mesmo que fosse naturalmente mais forte do que Loch, seu fôlego acabou rápido. Rápido demais. — Ai...

Caiu como uma pedra no colo de seu amigo, que estava com uma feição chorosa e incrédula, como se um peso ainda maior lhe detivesse a consciência.

— Felipe... — murmurou, posicionando-o deitado sobre suas pernas enquanto observava seus olhos pesarem cada vez mais. — Eu sinto muito...

— Você... — balbuciou, com suas últimas forças antes de colapsar totalmente. Sentia as mãos esqueléticas de Loch acariciando seus cabelos, como que numa tentativa de conforto. — me... drogou?

— Você não vai morrer... Eu vou fazer o possível...

No banheiro feminino, Serena deu um estridente berro. E esse berro foi o último som que Andrade ouviu, antes de desmaiar completamente.

. . .

Serena mantinha o braço estático de Verônica tateando seu rosto, enquanto chorava de forma errática sobre seu sangue.

Com pesar, a jovem Lopes retirou, de um bolso disperso em seu vestido, um molho de chaves. As manchas rubras em cada um dos objetos metálicos ressaltava a desesperança, como que saltando em sua mente para lembrá-la, constantemente, que Verônica não conseguiria fugir com ela.

Soltou as chaves no chão. Tinha pego do cadáver de Marilúcia, após checá-la minuciosamente. Era uma oportunidade de abrir as salas trancadas que tanto lhe instigavam. Mas agora, de nada mais servia aquilo. Iria acabar morta. Provavelmente, já amanhecia.

Por detrás dela, Loch emergiu, inconstante. Engoliu um pouco de saliva e pegou, pelo cano, o revólver caído no chão. Seus passos titubearam em direção à garota, os ouvidos sufocando todos os choros impetuosos. Ela, sempre de costas a Victor, não conseguia ouvir nada, não conseguia sentir nada. Nem sequer sabia que ele estava ali. E não precisava saber. Seria mais rápido assim.

Com força, o garoto acertou o cabo da arma na cabeça de Serena. Apesar da relativa fraqueza do agressor, ela desmaiou instantaneamente com o impacto. Estava fraca e, além do mais, passava mal. Precisava somente de um pequeno impulso para perder a consciência de forma total.

Carinhosamente, o jovem se agachou, segurando o corpo inerte de Serena com suas mãos e a arrastando para longe. Lopes passara tanto tempo perto do cadáver que suas pernas estavam totalmente rubras, traçando um caminho escarlate por seu percurso.

Ele não podia perder tempo. Não podia parar para pensar, para sentir compaixão. Precisava ser o mais frio possível nesse momento. Qualquer erro seria comprometedor em seu plano.

Respirou fundo, antes de sair do cômodo. Viu, de relance, o molho de chaves de sua vítima, derrubado no meio da trilha vermelha. Não fechou a porta. Precisaria pegar aquelas chaves depois.

A Psicologia do AssassinatoOnde histórias criam vida. Descubra agora