12 - Sombras

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Gustavo

Eu perdi a noção do tempo. Isso era bem fácil ali, onde os sons eram sempre os mesmos, e a passagem entre dia e noite era apenas uma ideia distante em meio à movimentação constante de pessoas. 

De qualquer maneira, eu não teria sabido a diferença já que minha visão não tinha voltado.

Quando acordei pela segunda vez, não consegui me mover muito bem. De cara percebi que estava dopado e amarrado ao leito, e fiquei profundamente chateado porque Kai não estava lá comigo. Ele apareceu naquele dia, e no seguinte, mas depois, não apareceu mais. Não que eu tivesse visto.

Eu não teria visto. Que idiota eu era.

Um médico que não era o Kai conversou comigo sobre meu quadro de saúde. Ele também usou as malditas letrinhas para me explicar as coisas e eu me vi com saudades do Kai, mas não perguntei por ele. Não perguntei, não pedi sua presença, sequer mencionei seu nome outra vez.

Eu acho que fiquei uns oito ou dez dias naquele lugar. Eu dormia muito e já tinha desistido de me importar com aquele tubo na garganta. Na verdade, quanto mais o tempo passava, mais eu queria ficar quieto no meu canto, torcendo para dormir de novo assim que acordava. 

No dia que tiraram aquele maldito tubo da minha garganta, Kai estava lá. Ele segurava minha mão, e quando senti seu toque, meu corpo inteiro saiu do estado de melancolia e entrou num estado de expectativa. Era como o barato que eu experimentava quando estava prestes a cheirar uma carreira.

Ansiedade.

— Como você está se sentindo? — ele me perguntou, assim que parei de engasgar e tossir. Senti seu aperto nos meus dedos e fiquei aborrecido por ele me perguntar qualquer coisa quando ele, melhor do que ninguém, devia saber que havia milhares de agulhas perfurando minha traqueia.

Pedi para escovar os dentes, uma enfermeira trouxe uma bandeja e me ajudou. Eu sentia o olhar do Kai sobre mim, e isso me deixava ainda pior, porque eu tive que cuspir na frente dele.

Cuspir nunca tinha me constrangido em nenhum momento da minha vida. Achei bizarro me sentir assim tão encabulado com uma coisa tão besta. Quando percebi que não descamaria a garganta ao falar, respondi:

— Ótimo — minha voz parecia um apito de uma maria-fumaça. Ridículo.

— Mentiroso.

Pensei em fazer uma piada. Perdi a vontade assim que engoli a saliva, e me resignei a aquiescer em silêncio. A mão que segurava a minha começou a aquecer meu braço e tive vontade de puxá-la para mais perto ou largá-la de uma vez. Eu não sabia o que estava acontecendo dentro de mim, mas eu estava irritado com o Kai.

Como acontecia quando estudávamos juntos.

Será que eu nunca ia superar essa merda?

— Preciso conversar com você a respeito de algo. 

— Hm.

— Antes de tudo, quero que saiba que o Chokito está na casa da Lílian. Ele está alimentado, seguro e confortável.

Assenti e tive vontade de chorar. Uma por alívio pelo meu cachorro, outra por raiva por me lembrar que Kai era noivo e meu cachorro estava com a pessoa que eu menos gostava no momento, sem motivo algum.

Aquele moleque idiota quatro-olhos e magrelo tinha encontrado alguém, e não qualquer alguém, mas uma modelo loira e reluzente. Tinha se formado médico pela USP, e tinha conseguido me manter vivo naquele buraco mesmo preso sob escombros. Ele tinha alcançado a porra toda, e eu continuava um derrotado, um miserável e inútil como meu pai adorava me classificar.

Indestrutível (Romance Gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora