27 - Solidão

189 35 22
                                    

Kai

Apoiei minhas duas mãos na maca e estiquei minhas costas. A dor percorreu minha espinha do pescoço até o quadril. Prendi a respiração e fiz o mesmo movimento outra vez, e de novo, até que a tensão muscular foi aliviando e a dor diminuindo a cada repetição.

– Dr. Kai! O paciente da baia cinco está vomitando sangue!

Pois é. Acharam que eu estava numa sessão de fisioterapia? Não. Eu estava trabalhando.

– Remova-o para a cirurgia. Agora. – Ordenei, depois estiquei os braços e segui a nova auxiliar de enfermagem até a sala de emergência.

Eu havia voltado ao trabalho tinha apenas três dias. Foi algo que eu insisti para acontecer e para isso tive que sair atropelando a burocracia do INSS; consegui antecipar minha perícia, menti nas respostas e, agora, ainda que minhas costas protestassem depois de algumas horas de pé, era um alívio estar correndo de um lado para o outro entre pacientes que em sua maioria estavam muito piores do que eu.

Foi a forma que encontrei para distrair minha mente. Eu não suportava mais um segundo dentro do meu apartamento sendo devorado por uma solidão devastadora. Depois que Gustavo desapareceu, os dias tornaram-se cinzentos de novo e toda aquela inércia que antes eu apreciava e até almejava, transformou-se no meu pior inimigo.

– A pressão está caindo rapidamente! Providencie uma bolsa de O Negativo! Alice! Reserve o Centro Cirúrgico. Quem está no plantão? – Exclamei por sobre o ombro. Minha mente fez a varredura nas informações das escalas enquanto acompanhava a maca se deslocando pelos corredores.

A correria era bem-vinda, ainda que isso envolvesse alguém que apresentava um grave quadro de hemorragia interna. Focar no paciente tirava meus pensamentos de mim mesmo e, principalmente, do Gustavo. Eu me distraía dos meus temores acerca de sua recuperação e de suas debilidades quando precisava focar em outrem.

Havia, contudo, algo me incomodando há dias e eu andava profundamente angustiado sem saber a razão. Meus pensamentos me enganavam cada vez com maior frequência, trazendo Gustavo à cena nos momentos mais inoportunos, como agora, enquanto eu comparava os danos no corpo desse jovem que havia caído do terceiro andar de um prédio, às mazelas do Gustavo quando dera entrada no hospital.

Eu não podia pensar nele. Não devia.

Mas eu pensava nele o tempo todo.

Eu tinha medo de tantas coisas que chegava a sufocar. Ele não havia comparecido às consultas marcadas com o neurologista, nem com o oftalmologista, muito menos com o psicólogo, e o fato de eu não poder mais monitorá-lo me deixava ensandecido pois essa simples negligência podia significar muitas coisas.

Teria ele recaído? Estaria precisando de algo? Passando alguma necessidade?

Pensava em mim?

Fazia três semanas que ele havia saído da minha casa e da minha vida sem uma palavra ou promessa. Eu havia acordado tarde naquele dia, saí do meu quarto e de cara percebi que tudo estava mais frio e mais vazio do que antes. Chokito não veio me encontrar na porta do quarto e Gustavo havia desaparecido.

Não me dei ao trabalho de o procurar ou esperar que voltasse. Ele havia levado suas coisas, tinha até se preocupado em dobrar a roupa de cama, lavara a louça e deixara tudo em ordem. Não havia carta de despedida mais explícita do que aquela.

Meu coração se partiu naquele momento. Fui acometido por um sentimento tenebroso e dolorido, algo que eu sentira poucas vezes na vida.

Remorso.

Eu devia tê-lo abraçado naquela madrugada. Devia ter tido coragem de dizer como me sentia, que eu estava com medo, sim, mas que não queria que fosse embora. Eu poderia ter feito tantas coisas, dito tantas coisas, bastava um único gesto para que ele entendesse que eu o aceitava como era, porque menos dele não seria o ideal para mim.

Indestrutível (Romance Gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora