Kai
Eu já estava acordado há no mínimo 22 horas. Eu não sei se em outras partes do mundo é assim, mas aqui nessa bosta de país, um residente que deveria fazer 60 horas semanais de trabalho (o que já estava bem acima do limite da CLT que não contemplava médicos residentes por não haver vínculo empregatício) às vezes chegava a trabalhar mais de 100 horas semanais.
Era um descaso descabido. Não havia médicos suficientes, por isso as filas, os erros hediondos e o mau atendimento. Um residente poderia ter a maior boa vontade do mundo, mas quando passava mais de 20 horas sem descanso, toda a boa vontade evaporava, restando as olheiras e o ato de se arrastar pelos corredores tentando não esganar pessoas que estavam há mais de quatro horas esperando por atendimento enquanto te chamavam de vagabundo.
Sim, elas tinham razão por reclamar. Mas não pensem que era porque o médico ficava jogando paciência no celular entre uma consulta e outra. Às vezes ele cochilava sentado na tampa de um vaso sanitário qualquer. Havia os momentos de descanso, sim, que raramente chegavam à quantidade adequada de horas pois éramos acordados o tempo todo, muitas vezes sem uma razão plausível. Tinha dias que era simplesmente impossível aguentar, e meter a caneta numa receita qualquer acabava sendo a saída para alguns.
Não era o meu caso, e nem era porque eu me considerava melhor do que os outros. O fato é que eu não podia nem me sentar, já que atendia na sala de emergência, para onde eram encaminhadas as pessoas que chegavam literalmente sangrando no PS. Cortes, buracos de bala, de facadas, atropelamentos, queimaduras, tudo o que configurava o cenário de horror dos hospitais, eram esses que passavam pelas minhas mãos.
Não sei onde estava com a cabeça quando escolhi Traumatologia. Devia ter visto menos Grey's Anatomy. O caso é que, eu estava exausto e puto porque, além da imensa fila de pacientes aguardando atendimento, estava com uma equipe reduzida por conta dos temporais que assolavam a cidade nos últimos dias. Enchentes por todos os lados dificultavam o acesso e aumentavam o trânsito exponencialmente, e o terror estava longe de acabar.
— Dr. Matsuki, pode me dar uma mãozinha? — Alice, a enfermeira preta de porte avantajado, e de longe a minha favorita entre todas do plantão, pedia ajuda com um rapaz que tinha o braço sangrando por uma fratura exposta. Tínhamos que esperar o ortopedista, mas o cenário era macabro demais e não havia muito tempo hábil para aguardar a chegada do especialista.
— Quanto tempo até a chegada do Dr. Voss?
— Mais oito minutos — informou Jane, a auxiliar de enfermagem mirradinha que fazia um curativo no supercílio costurado de um bêbado briguento.
— Vamos tentar conter o sangramento com essas ataduras e esperar um pouco mais. Administre fluídos e mantenha o membro erguido — instruí. Quando fui secar o suor da testa, me esqueci que ainda estava de luvas e sujei minha face de sangue. Praguejando alguns palavrões nunca usados antes, fui até o banheiro me higienizar.
Minha cabeça doía, e se não bastasse o cansaço, ainda tinha que enfrentar o telefonema para minha noiva. Havíamos marcado de sair para comemorar o aniversário do noivado, contudo, esse plantão de última hora caiu no meu colo, totalmente fora de escala, porque um dos médicos foi transferido sem que ninguém tivesse sido avisado.
Coisas da Saúde Pública. Palmas aos governantes.
No banheiro, joguei uma água no rosto e quase arranquei a pele da testa na tentativa de conter qualquer contaminação. Observei meu reflexo e fiquei consternado com o que vi.
Meu cabelo liso, comumente espetado na parte de cima num corte mais comprido e raspado dos lados, estava empastado e colado na testa. Havia olheiras, uma camada de barba por fazer escurecia meu rosto e a pele geralmente pálida estava esverdeada. Meus olhos escuros estavam opacos e vermelhos pelo cansaço.
Definitivamente, um pedaço de lixo.
Consultei meu relógio. Mais dez minutos e poderia dar o fora dali. Pensei em ficar no banheiro, escondido até dar meu horário, mas meu senso de ética não permitiu, então fui fazer a última ronda entre as cabines dos pacientes em atendimento apenas para averiguação final.
Dei um giro e, tirando um engasgamento de uma criança com uma moeda que, por ser um item de colecionador, causava mais preocupação ao pai do que o próprio filho, não houve mais nada além dos inúmeros casos que já esperavam pelos procedimentos: medicação, internação, suturas e imobilizações. Tive um imenso prazer em mandar o pai xeretar nas fezes do filho quando, eventualmente, o menino evacuasse a tal moeda e, assim que vi Dr. Voss adentrar o PS, fui ao vestiário me preparar para deixar o plantão.
Meu celular vibrou no bolso de trás enquanto eu deixava o hospital pela porta dos fundos. Quando olhei a tela, me lembrei.
Puta merda!
Tinha me esquecido de ligar para a Lílian!
— Alô! Amor?
— Ei, Kai! Onde você está?
— Estou saindo do hospital.
— Como assim? Você não tinha folga hoje?
— Tinha, mas... Enfim.
— Você não vai me dar o cano, vai?
Merda.
— Eu estou há mais de 20 horas sem dormir, Lilian. Será que dá pra deixar para amanhã? É certeza que não venho pro hospital.
— Certeza? Do mesmo jeito você tinha certeza de que não teria plantão hoje?
— Vai ficar aborrecida comigo?
— Aborrecida? Aborrecida eu estava antes! Agora estou puta contigo!
Suspirei pesado e pedi ajuda a qualquer entidade de plantão.
Será que entidades fazem plantão também?
— Me passa o endereço do bar.
Ela não levou em consideração minha queixa. Ela jamais entenderia. Lílian era uma garota privilegiada, mas sem o uso vulgar da palavra. Ela cresceu numa família bacana, sem pressão e com dinheiro. Para terem uma ideia mais ampla, ela era uma artista plástica.
Quem paga contas com artes plásticas hoje em dia?
Enfim, ela estava no meio certo, tinha o incentivo certo e todo o conjunto que a tornava "privilegiada sem o uso vulgar da palavra". Além de linda, magra, loira e alta...
Já mencionei que ela era privilegiada?
A chuva me distraiu das minhas confabulações acerca da injustiça da vida que me julgava como outro tipo de privilegiado: o "inteligentão" só porque tinha olho puxado. A expectativa era de que: ou eu seria um nerd de exatas numa multinacional, ou um neurocirurgião de renome internacional, ou, em último caso, um maestro numa orquestra de relevância nacional.
Eu não era nada disso. Me matei de estudar para entrar numa faculdade pública e, quando digo que me matei, foram dois anos estudando o dia todo enquanto trabalhava como balconista numa farmácia durante as madrugadas. Passei, sim, na USP, quase que de raspão, mas não foi por ser privilegiado ou ter uma inteligência acima da média. A prova disso era que eu já tinha meus 27 anos de idade e estava caminhando até meu humilde carro popular financiado, todo encharcado e quase vomitando de enxaqueca.
Ao menos agora eu ganhava uma bolsa-auxílio que me permitia pagar o aluguel sem depender do suporte da minha mãe, que também se matou por cinco anos para me ajudar a estudar. O que eu ganhava não era algo significativo para quem morava numa das capitais mais caras do país, mas era melhor do que nada.
Acessei o Waze com o endereço enviado por Lílian. Para minha consternação, ficava no mínimo meia hora de onde eu estava, lá pro lado da Zona Sul. Com a chuva que ainda caía, eu tinha certeza de que meia-hora era um sonho distante de uma mente em delírio.
Com sorte, Lílian odiaria meu aspecto de bêbado amanhecido e me deixaria voltar para casa antes do amanhecer, e eu poderia dormir, quem sabe, umas dez horas seguidas.
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Indestrutível (Romance Gay)
عاطفية🌈 Romance Gay 🥇👬🏼 PRIMEIRO LUGAR NA CATEGORIA "MELHOR CASAL" - 3ª Ed.CONCURSO CÓSMICO 2024 🥈#2 em Novidade (Jun/2024) 🥈#2 em Bissexual (Jun/2024) 🥉#3 em Novo (Jun2024) 🏅#4 em Sensível (Jun/2024) Kai levava uma vida agitada. Residente no Hos...