Indestrutível (Romance Gay)

25 - Valete de Paus

Kai

Eu não me movi. Consternado, desviei meus olhos para o Chokito que dormia ao meu pé e fiquei imaginando esse cachorro matando uma barata que fosse, porém, não conseguia, pois sua cara de filhote babão peludo tornava isso impossível.

Gustavo era igual. Ele também tinha uma postura, uma aparência e um humor que tornavam impossível enquadrá-lo como um homicida. Por mais que ele afirmasse isso, eu não conseguia aceitar.

Todavia, se fosse verdade, eu aceitaria? Eu fiz um juramento com o objetivo de preservar a vida a qualquer custo. Qualquer vida. Contudo, esse homem à minha frente afirmava ter findado uma, e eu tinha medo de ouvir a verdade que, como ele mesmo disse, mudaria tudo.

Senti-me tentado a recuar. Tive vontade de fazer um gracejo e deixar isso pra outro dia, mas eu sabia que não faria diferença. A semente do desastre havia sido lançada e já estava germinando entre nós. Não havia a menor possibilidade de ignorar o fato e eu me muni de coragem para enfrentar o que viria.

– Como aconteceu?

Ele se afastou novamente, virou de lado e passou a encarar o nada. Sua postura sempre tão altiva havia derretido, sobrando um amontoado de músculos e ossos curvado e indefeso. Levou um tempo até que ele começasse a falar. Sua voz soava estranha, contida e grave, como quando me atacou na porta da escola. Lembrar do fato me fez perceber que havia sim um mal entranhado debaixo de sua capa de "Golden Retriever", um "lobo-mau", uma natureza obscura, sombria, talhada a cada golpe levado ao longo de anos. Ele sempre tentou esconder; se eu tivesse olhando com atenção, teria percebido, mas não notei pois sua armadura de fodão brilhava demais e ofuscava todo o resto.

– Quando minha mãe morreu, meu pai sumiu por um tempo. Eu tinha comida em casa, coisas guardadas na geladeira e, ainda que estivesse com o braço imobilizado, pude me virar por duas semanas. No entanto, as coisas foram acabando, e eu precisava fazer algo a respeito. Fui ao trabalho do meu pai. Até então, eu não sabia que ele era dono daquela empresa; não imaginava que ele fosse rico, mas acabei constatando isso lá. O nome dele estava gravado numa placa na entrada, dele e de outro homem. Eram advogados, sócios de uma empresa de advocacia bem-sucedida.

Ele fez uma pausa e eu fiquei na minha. Não podia apressá-lo, mas estava curioso demais a respeito.

– Talvez por isso ele te desse coisas boas? Tipo, roupas e tênis de marca?

Ele curvou o lábio na sombra de um sorriso cínico. Toda a vez que ele fazia isso, eu tinha vontade de colar meus lábios aos seus. Era uma vontade bem esquisita, pois, geralmente ele fazia essa expressão para zoar com a minha cara.

– Porque gostava de mim é que não era. Era tudo usado, então acho que eram coisas que o outro filho dele não queria mais. Enfim, nem era para eu saber onde ele trabalhava. Descobri quando vi um cartão de visitas em casa e perguntei à minha mãe; ela respondeu que era de onde ele trabalhava, então guardei o tal cartão. Quando apareci por lá, ele ficou furioso. Veja bem, eu era muito parecido com ele. Muito mesmo. O mesmo cabelo, mesmos olhos, mesma estatura, a única diferença era que ele usava barba e era mais forte, de resto, eu era sua cópia ambulante. Naquele dia, ele me escorraçou e mandou eu esperar por ele em casa. Com medo, fiz o que ele mandou. – Gustavo fez uma expressão estranha e ficou meio pálido. Me aproximei e segurei sua mão; estava gelada e tremia – eu... não tô me sentindo bem, Kai.

Ele realmente parecia prestes a vomitar. A lembrança devia ser muito pesada para ele se sentir assim. Fui até a cozinha e peguei um copo d'água para ele.

– Olha pra cima e respira devagar – instruí enquanto massageava suas costas – se concentra na respiração, já-já melhora.

Ele ficou um tempo com os olhos fechados e passou a respirar regularmente. Qualquer um diria que aquilo era fricote, mas eu sabia diferenciar muito bem quando era e quando não era.