14 - Turvo

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Gustavo

Fazia três dias que eu estava no quarto. Ainda não podia andar devido a uma porrada de remendos que eu tinha por dentro, no baço, no pulmão e no fígado; meu braço seguia imobilizado, mas meu quadro geral já estava bem melhor do que antes, livre daquele maldito tubo na garganta, e vendo luzes e sombras.

A visão não tinha voltado totalmente. Eu via apenas vultos quando algo estava bem próximo, mas não podia discernir as coisas. Eu sabia quando era uma determinada enfermeira por ela ser grande e ter a pele bem escura, e quando era o Kai por um conjunto de fatores, como conhecer sua silhueta, seu cabelo espetado... e o seu cheiro.

Kai tinha um cheiro. Era algo só dele, e era impressionante o fato de eu ter isso na memória. Eram as mesmas notas olfativas de quando éramos garotos, e eu imaginei que isso se tornara evidente devido ao fato de eu não enxergar direito. Talvez por aquele lance de sinestesia, quando um sentido se sobressai pela falta do outro, sei lá se esse era o nome da coisa.

Eu estava preocupado. Ansioso. Angustiado. Eu estava perdendo trabalhos e as contas não davam trégua. Tinha o aluguel, o Chokito, as cicatrizes que iam foder com a minha carreira, enfim, era muita coisa rodando na minha cabeça e eu só queria que os analgésicos fossem um pouco mais fortes pra eu poder esquecer disso tudo. Tinha muita coisa que eu queria apagar da mente. Muita mesmo! Meu passado; meus pesadelos recorrentes; meus medos incrustados na alma; um certo beijo...

Impossível. Não conseguia me desligar de nenhuma dessas coisas. Eu já tinha beijado uma porrada de bocas por aí ao longo dos anos, mas o beijo do Kai ainda me queimava por dentro. Talvez por ter sido o último? Ou por ter sido dele? Qual era o meu lance com o Kai? Meu questionamento nem era pelo fato de ele ser homem, eu sempre joguei dos dois lados, mas era por ser ele! O magricela pedante metido a superior! O cara que tinha uma mamãe que o amava e passava suas roupas sempre cheirosas (ok, ela era dona de uma lavanderia, até aí...) mas era notório que a mãe o amava.

Eu não sabia se tinha inveja do Kai ou se o queria para mim.

– Como está se sentindo, hoje?

Era ele.

– Tão normal quanto um milkshake. E você?

Kai estava perto do leito, mas não muito. Todo dia ele dava uma passada para me ver, ficava uns dez minutos e ia embora. Não me tocou mais, não tocou no assunto do beijo nem nada. Cada vez que ele vinha e ia, parecia que levava um pedaço do meu humor e só me restava a melancolia de sempre.

– As infiltrações que estão aplicando começaram a fazer efeito. Já consigo ficar de pé sem dor, mas ainda sinto para me inclinar e andar. Preciso me manter na cadeira para não forçar, então vai demorar uns dias. Comecei a fisio, ondas-curtas e outras coisas.

– Bom pra você. E a Lílian?

Pois é, agora eu conhecia a tal Barbie. Ela veio me ver junto com o Kai. Me falou do Chokito, que estava encantada e o queria para ela (nem fodendo! Ela já tinha o Kai!), perguntou da minha saúde e até do nosso passado quando estudávamos juntos.

Fiz questão de contar as coisas mais constrangedoras do mundo só para me vingar do Kai. Pena que não dava pra ver a cara dele. Eu estava aborrecido porque ele me deu aquele beijo e depois trouxe a noiva para esfregar na minha cara, só pra ficar claro que eu não era uma opção.

Doeu. Doeu de um jeito que não deveria. Tudo bem, eu o conhecia há anos, mas não tínhamos um relacionamento. Bom, eu acho que nunca foi um relacionamento, mas um vínculo se formou naquele buraco onde nos mantivemos vivos e eu estava cansado demais para ignorar.

Indestrutível (Romance Gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora