xxiv. algo que eu nunca poderei ter

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Stella terminava de se arrumar quando o porteiro do prédio interfonou para avisar que o pai dela a esperava na portaria. Ela olhou para o relógio da cozinha, cujos ponteiros marcavam ainda dez horas de uma bela manhã de outubro, e o agradeceu antes de dizer que já estava descendo. Vick, a outra doutoranda com quem dividia o apartamento há dois anos, saiu do quarto com o namorado depois de uma noite intensa de libidinagem. Stella sacudiu a cabeça na tentativa de dissipar os barulhos de sua memória.

— Já vai, amore? — Vick perguntou ao analisá-la com os olhos pesados de sono. — Adorei o vestido de camponesa. Combina com a sua personalidade de mulher conservadora dos anos sessenta.

— Bom dia, Doutora — o namorado dela acenou para Stella com bom humor ao passar por ela para ir à cozinha, bocejando durante todo o curto trajeto. — E aí, dormiu bem?

Ele sorriu para ela enquanto colocava a máquina de café para funcionar, cutucando a namorada como se Stella não fosse perceber. Vick e o namorado compartilhavam do mesmo senso de humor. Os dois se divertiam à custa do modo de vida regrado e pacato de Stella.

— Vocês são absurdamente escandalosos, sabiam? — ela disse em vez de rebater o comentário de Vick sobre o vestido que escolheu usar para ir ao segundo casamento de Helena.

Dessa vez, ela estava prestes a se casar com quem ela deveria ter se casado desde o princípio. O destino, no final da contas, sempre dava um jeito de juntar duas almas gêmeas. No fundo, Stella esperava que o mesmo milagre recaísse sobre ela. Ainda que estivesse em outro momento em sua vida, ela ainda sentia a faísca de uma esperança ínfima de um dia se casar com a única mulher que amou em toda sua vida.

Em todos esses anos, nenhuma mulher foi capaz de prender a atenção de Stella como Cacau havia feito. O encanto, no entanto, havia se quebrado. Stella não se sentia mais enfeitiçada por Cacau, mas ainda a amava com a mesma ternura de algo que só se vive uma vez.

— Desculpa, acho que a gente meio que se empolgou — Vick deu uma risadinha rouca, passando a mão rapidamente pelo cabelo cacheado com uma expressão sonhadora no rosto.

Vestindo somente uma camiseta comprida de Sérgio, cuja profissão favorecia o porte atlético, ela parecia ser bem menor do que realmente era.

— Mas pensa pelo lado positivo, vai. Daqui a algumas semanas eu vou me mudar e você vai finalmente se ver livre dessa algazarra toda que você odeia. Não é ótimo?

— É maravilhoso, mas não quero pensar nisso ainda — Stella tratou de se colocar em movimento para pegar tudo o que precisava antes de descer. — Não sei como que vou arcar com esse apartamento sozinha. Onde que eu vou arrumar outra pessoa para morar comigo tão rápido? Odeio mudanças bruscas, odeio ter títulos e continuar sendo pobre.

Ela não parou de resmungar nem mesmo quando precisou se abaixar, com o vestido de camponesa nos joelhos, para pegar o hidratante labial que havia sido chutado para debaixo da mesa de centro. Stella também não queria pensar que estava prestes a perder sua única amiga para a união estável com o namorado de quatro anos. Para a tristeza de Stella, que já havia se acostumado com a rotina com Vick, Sérgio parecia que não iria a lugar algum tão cedo.

— Se você conhecer alguma senhora rica que queira sustentar uma cientista falida, mas muito promissora, me avisa — ela ajeitou o vestido assim que se colocou de pé, dando uma última conferida no espelho da sala.

— Pode deixar — Vick respondeu da cozinha, aparecendo na sala logo em seguida com um copo de água na mão. — Vou ficar atenta, e você vê se consegue alguém nesse casamento que esteja buscando um novo lar. Faça amizades, influencie pessoas.

— Quem é que vai querer morar com uma chata? Só você para me aguentar — Stella bufou, certificando-se de que guardou tudo o que precisava na bolsa. — Tenho que ir. Meu pai está me esperando lá embaixo para me levar. A viagem é meio longa. Como amanhã é aniversário da minha mãe, eu só volto na segunda-feira.

No Final Tudo Faz SentidoOnde histórias criam vida. Descubra agora