xxxvi. metade de mim agora é assim

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Stella não gostava de cinto de segurança. O desconforto que ela sentia com o contato do material contra seu corpo era doloroso e a irritava profundamente, mas não havia muito o que fazer. Ela o usava porque sabia que era necessário, porque não queria correr riscos à toa, e porque era o correto a se fazer. No carro com Brooklin, Stella tentou afrouxá-lo um pouco para aliviar o aperto que sentia em seu peito.

Naquele dia, ela estava ainda mais sensível. Qualquer toque, por mais suave que fosse, assemelhava-se a uma agressão. Depois do jantar com os parentes, Brooklin não voltou a encostar em Stella. No meio do caminho, como uma forma de animá-la, Brooklin deixou que Stella escolhesse a música que ouviriam até o lugar misterioso que ela precisava ir.

— Coloca o novo álbum da Taylor Swift? — ela pediu com extrema polidez, tentando conter os impulsos de ser uma verdadeira megera rabugenta com quem não merecia. Não era culpa de Brooklin que Stella estava à beira de um colapso mental. — É o 1989. Não tive tempo de ouvir ainda.

— Outro álbum? — Brooklin a encarou com o que pareceu ser uma mistura de choque e indignação. — Essa mulher lança álbum todo mês.

Stella não respondeu de imediato. Ocupada com a central de multimídia, ela procurou o álbum que queria ouvir e o colocou para tocar em volume baixo. Só então o cérebro dela registrou o desaforo de Brooklin.

— Não é verdade, mas eu não acharia ruim se fosse — Stella ponderou, e então se voltou para ela para oferecer um pouco de contexto. — Ela está relançando os álbuns antigos, esse é espetacular. Quando ele foi lançado, eu ainda estava me recuperando do que a Cacau fez comigo. Na época, parecia uma ferida aberta que não cicatrizava nunca. Eu nunca fui muito boa em entender os meus sentimentos, nunca soube dizer onde doía, por que doía, mas as músicas dela diziam exatamente como eu me sentia. É como se ela escrevesse para mim, sabe? Pode ser bobo, mas me conforta. Minha mãe tem o Elton John, eu tenho a Taylor Swift.

— Não é bobo, é a mesma coisa que eu sinto com Pink Floyd — Brooklin começou dizendo, surpreendendo Stella com a vulnerabilidade em seu tom de voz. — Passei toda a minha adolescência chorando de saudade do que eu perdi ao som de Comfortably Numb, The Great Gig in the Sky, Wish You Were Here... Sabe, eu não seria metade do que sou hoje se não fosse pela arte da palavra, que traduz tudo o que nunca pude dizer.

Ela pausou de repente e só conseguiu dar continuidade ao que dizia quando estacionou no meio fio de uma rua residencial. Stella sentiu uma forte onda de empatia abatê-la quando se deu conta do que Brooklin dizia. Ela estava compartilhando com Stella parte de uma dor antiga.

— Gosto da banda Glória também, não sei se você conhece, mas eu ouvia muito quando era adolescente. Eles têm essa música que chama Minha Paz — com as mãos no volante, Brooklin manteve o carro ligado, fixando o horizonte com o olhar distante. — É a música que mais mexe com as minhas emoções porque me faz lembrar da minha mãe. Na época, eu sentia que tinha sido feita para mim. No fim das contas, é como se o tempo tivesse parado porque ainda me sinto assim. Sozinha e perdida.

Depois de tantos anos, aquela era a primeira vez que Stella testemunhava Brooklin falar da mãe. Da família. De tudo que perdeu. Desde que se conheciam, ela nunca ouviu Brooklin sequer murmurar sobre o que tinha acontecido com a família. Embora o comportamento dela tenha se tornado ainda mais errático com o passar dos anos, a impressão que ficou em Stella era a de que Brooklin tinha seguido com a vida como se o mundo não tivesse desabado sobre a cabeça dela de uma hora para outra.

Se não tivesse perdido os pais e o irmão mais novo naquele acidente, seria ela uma pessoa diferente? Stella jamais saberia do que poderia ter sido, e, ainda assim, ela não deixou de se sentir angustiada em se deparar com o raro vislumbre da dor que Brooklin ainda carregava com ela. Talvez tenha sido aquele breve momento de vulnerabilidade que tenha feito Stella esticar o braço na direção de Brooklin e tomar para si a mão que ainda segurava o volante. Não havia nada que ela pudesse dizer para consolá-la, então ficaram em silêncio por longos minutos, com a mão sobre a de Brooklin em sua coxa. Stella não ofereceu qualquer resistência quando os dedos naturalmente se encaixaram em um enlace quase magnético.

No Final Tudo Faz SentidoOnde histórias criam vida. Descubra agora