xiv. lágrimas e chuva

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Já mais para o começo da noite, quando a cidade sossegava e as luzes dos prédios vizinhos atravessavam a escuridão, elas ouviam o disco de vinil da banda Kid Abelha de que Cacau tanto gostava. No quarto escuro, as luzes no teto piscavam como se estivessem em uma discoteca e tudo parecia progredir lentamente, como se os minutos pingassem em gotas no relógio. Stella nunca esteve tão calma e relaxada.

— Nunca vou esquecer o dia de hoje — Cacau suspirou de repente, quebrando o silêncio harmonioso entre elas.

— Nem eu — Stella sorriu ao virar a cabeça na direção dela, contente de finalmente estar deitada em uma cama limpa. — As coisas que fiz hoje eu nunca teria feito se não estivesse com você.

— É só o começo de muitas coisas que vamos fazer juntas — ela disse, e então pegou a mão de Stella para entrelaçá-la à dela.

Tocar os dedos de Cacau era o suficiente para despertar o animal enjaulado que era o desejo de Stella. Havia no ar uma certeza quase fatídica de que seu medo, sua hesitação, seu eterno recuo, seriam vencidos naquela noite, mas não antes de assistirem ao desfile de moda favorito de Cacau. Assim que desligou a música e colocou a edição mais recente do desfile para assistirem pelo Youtube, Cacau voltou a se deitar, dessa vez, com a cabeça apoiada no ombro de Stella.

Pela primeira vez, ela experimentava a sensação de fazer algo que não a interessava pelo puro prazer de estar com quem amava. Ainda que não passasse de uma ignorante em matéria de amor, ela sabia, àquela altura, que somente um sentimento tão paralisante como era o amor a faria passar horas em frente à TV assistindo a mulheres desfilarem de lingerie.

— Qual é a sua angel favorita? — Stella perguntou quando já estavam na metade do desfile, exagerando na pronúncia de propósito depois de ter ouvido o termo repetidas vezes durante a edição, com o intuito de se distrair do próprio tédio.

— Difícil escolher uma — Cacau disse com a voz comprimida, virando-se momentaneamente para encará-la com os olhos brilhantes e jocosos. — Todo ano muda. Duas edições atrás era a Behati, mas já fui fascinada pela Adriana. Na edição passada, confesso que estava pendendo para o lado da Candice. Gosto do jeitinho de menina doce dela. Já gostei mais da Alessandra, mas hoje acho que a minha favorita é a Laís. Li na Folha que ela torceu o pé nos ensaios, por isso não pôde participar do desfile desse ano. Inclusive, eu fui na Fashion Rio que ela participaria, mas ela teve que cancelar.

— É por isso que você quer fazer jornalismo, para cobrir os desfiles de moda? — Stella sorriu preguiçosamente para Cacau, sentindo os olhos pesarem com o que parecia ser o início de sonolência.

— Não é por isso — ela disse com um divertido rolar de olhos. — Eu gosto de informação. Gosto de saber um pouco de tudo, de estar em todos os lugares... é bom.

— Você é incansável — Stella comentou. — Nunca conheci alguém assim, tão empática e determinada, que se importa de verdade com a necessidade das outras pessoas. Você me faz querer ser melhor.

Cacau deu um sorriso contido, abaixando os olhos rapidamente para o queixo de Stella. Então, com a voz baixa e abatida, ela lamentou:

— Eu queria que o mundo fosse mais justo, sabe? Me dói ver o sofrimento das pessoas.

— Eu sei — Stella murmurou, esforçando-se para enxergar o mundo pela ótica dela. Quando não conseguiu, ela retornou o olhar perdido para a face enobrecida de Cacau e tentou animá-la. — Já são quase nove horas. Acho que este é um bom momento para o seu presente de aniversário.

Cacau se sentou abruptamente na cama, parecendo se animar com a ideia.

— Será que é agora que eu vou ganhar mais que um beijo? — ela se lançou sobre o corpo esparramado de Stella, roçando o nariz contra a mandíbula dela antes de beijá-la com a habilidade de uma felina voraz. — É agora, Stella, que vou sentir a maciez do seu corpo comprido, pele na pele? Nunca ninguém me fez esperar tanto.

No Final Tudo Faz SentidoOnde histórias criam vida. Descubra agora