Juventude nada feliz

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Meu nome é Zoco, nasci e cresci em Danji, a mais importante cidade do leste de Dai.

Danji foi dominada por Sana há muito tempo, foi colonizada e explorada. Era a cidade mais importante das colônias do leste, por ser litorânea era um importante ponto de comércio onde Sana comprava matérias-primas e vendia seus produtos manufaturados. Em Danji também se localizavam as melhores escolas coloniais de todas as colônias de Sana.

Não que antes o povo do leste não fosse ignorado e explorado. Há três séculos fomos forçados a nos juntar a Taen contra nossa vontade e desde essa época a exploração era grande, mas depois do domínio de Sana todos os bruxos locais e seus descendentes foram escravizados, assim minha família se tornou escrava e nasci sendo considerado escravo.

Desde criança eu trabalhava na casa do governador local limpando as taças de cristal fino. Era um trabalho cansativo para mim, pois além de garoto, eu era desnutrido, miúdo e esfomeado. Quando chegava a noite, o único horário no qual eu reencontrava minha família, não conversava com eles e desmaiava de sono em algum canto empoeirado que me sobrava. Eu gostaria de ter tido mais energia para conversar com minha família, mas sei que isso não é culpa minha. Não escolhi trabalhar tanto e passar fome, esta quase me matou. No entanto, eu a venci, porém três de meus cinco irmãos faleceram quando ainda eram pequenos famintos.

O governador era o mais poderoso representante de Sana em minhas terras e mesmo assim a solidão não o poupou. Ele era viúvo e pai de um garoto surdo mais novo do que eu. Entretanto, o governador tratava seu filho com frieza: não o abraçava muito e talvez o rejeitasse por causa da surdez.

Acompanhei a infância inteira do filho do governador. O garoto se chamava Yapin e éramos amigos desde quando tínhamos muita pouca idade, antes de ensinarem o preconceito a ele. Apesar da maneira com a qual ele me tratou mais tarde, eu sempre soube que ele nunca me odiou. Inclusive, ele me deixava acompanhá-lo em suas aulas particulares diárias e foi nelas que aprendi a ler, escrever e contar.

Tornei-me um dos escravos mais cultos, mas esse conhecimento não me valia nada de concreto. Na verdade, converti-me em um sonhador crônico e incorrigível, a pior sina de alguém privado de liberdade desde o dia em que nasceu. Minha mãe quando me viu perdido, preocupou-se e desatou a chorar, porque ela sabia o quão doloroso era sonhar.

Segundo as palavras de minha progenitora, o sonho era mais um tipo de fome e ela a sentia em sua própria alma todos os dias. Decerto, ela temia que eu herdasse esse apetite dela, pois não desejava que eu a acompanhasse em sua maior desgraça. Entretanto, minha mãe não pôde me impedir de ser um eterno faminto e ela carregou esse peso até o dia no qual ela se entregou definitivamente à morte após definhar por um tempo depois do falecimento de meu pai.

Por outro lado, meu progenitor era um homem rude e sem sonhos que permanecia calado o tempo todo sem expressar nada além de um conformismo cansado. Ás vezes, quando era criança, eu me perguntava se ele realmente me amava ou se sentia apreço por alguma criatura viva qualquer, visto que ele jamais me abraçou ou disse qualquer palavra carinhosa. Esse tratamento desprovido de qualquer manifestação de afeto era a forma como aquele homem seco interagia com tudo. Sua aridez era tão grande que ele se tornou conhecido como o homem sem alma e mesmo assim ele permaneceu apático.

Lembro-me do dia antecedente à morte de meu pai. No momento no qual olhei para seus olhos pela última vez, vi um vazio desconcertante desprovido de qualquer sentimento. Não havia medo, nem esperança muito menos amor no olhar de meu progenitor. Existia apenas o nada e essa constatação nunca deixou de me assombrar.

Voltando ao filho do antigo governador, eu era a única criança que brincou com Yapin e até os doze anos éramos melhores amigos. Ele só tinha a mim em seu silêncio, era uma amizade sem palavras: apenas de olhares e gestos. Ensinaram-lhe que meu povo era inferior e Yapin começou a se afastar de mim. Não o condeno, seu distanciamento foi por obrigação e ele nunca me tratou mal. No entanto, isso me feriu por eu o considerar um irmão. O afastamento de Yapin doeu muito, porque ele era parte de mim e o abismo criado entre nós converteu-me no mais desesperado dos meninos, porquanto eu me perdia de mim mesmo.

Por conta de Yapin aprendi que ninguém nasce para odiar os outros. As segregações e os preconceitos são ensinados e impostos. O ódio não é algo natural, ele é fruto do medo e da ignorância e continua sendo alimentado por quem almeja manter o mundo como ele está: injusto e cruel para com milhares de seres humanos, muitos deles tão famintos quanto eu era.

Quando eu tinha quatorze anos a solidão abraçou-me, pois meu pai morreu de cansaço e de fome, minha mãe não suportou a ausência do amado e se deixou morrer a fim de acompanha-lo , meus dois irmãos vivos foram vendidos para senhores de outras cidades pertencentes a regiões distantes da mesma colônia e Yapin me ignorava. O pai de meu amigo de infância começou a se tornar mais exigente e violento. Desconheço o motivo de tal mudança, mas suponho que tenha a ver com eu poder fazer serviços mais pesados e com o crescimento do filho que lhe quebrava expectativas. Porquanto, o garoto nunca atenderia às expectativas do seu pai apesar de possuir uma inteligência invejável, porque ele não era severo e autoritário como o antigo governador sempre almejou. Apenas sei que comecei a ter trabalhos mais pesados e a ser castigado com maior frequência.

Os mandos e desmandos de meu primeiro patrão duraram até meus dezenove anos. Quando ele morreu, fiquei livre dele, mas isso não me alegrou, porque Yapin saiu definitivamente de minha vida. Meu amigo tinha dezessete anos na época da morte de seu pai e após o funeral ele foi morar em Sana, fui um dos poucos escravos dele que permaneceram em Danji, eu me tornei um presente de boas-vindas ao novo governador e sua família.

Recordo-me da manhã em que o novo governador chegou a Danji com toda a sua família. Era uma fria manhã de outono, o chão estava alaranjado de folhas caídas e eu esperava quieto meu destino. Quando eles chegaram acompanhados de guardas, tive a ousadia de mirar para meus novos patrões e meu olhar se cruzou com os olhos dourados cuja dona era uma garota de castanhos cabelos cacheados que mais tarde eu descobri quem era.

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