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A noite estava fria, e o apartamento de Alice, até então imerso em uma calma gélida, parecia refletir a batalha silenciosa que ela travava dentro de si. Era um desses momentos em que o silêncio parecia pesado demais, como se cada detalhe ao redor estivesse impregnado de uma lembrança que ela tentava, desesperadamente, enterrar. As sombras na parede pareciam mais escuras, o ar mais denso, e o eco de sua própria respiração era tudo o que preenchia o ambiente. Em um impulso de coragem, Alice havia finalmente baixado as barreiras.

Luísa, sua amiga de anos, havia conseguido algo que Alice não acreditava ser possível: fazê-la falar. Com uma paciência quase sobrenatural, Luísa ouvira cada fragmento das dores que Alice guardava, cada palavra hesitante que escapava de sua garganta. E, em um misto de vulnerabilidade e exaustão, Alice havia se permitido abrir. Aquelas memórias, que sempre carregara sozinha, de repente não eram mais um segredo. Havia algo quase sobrenatural na leveza que sentia. Por um breve instante, sentiu que, ao verbalizar suas angústias, uma parte de si finalmente respirava.

Mas o alívio foi passageiro. Como uma onda que recua e depois retorna com força, a sensação de incompletude voltou a invadir seu peito. Sabia que aquele era um passo importante, talvez o primeiro rumo à cura, mas também sabia que o processo estava longe de terminar. O passado ainda se agarrava a ela, como uma âncora invisível, pesada, que tornava cada respiração um esforço. O que seria preciso para realmente seguir em frente? Será que algum dia conseguiria deixar essa parte de si para trás?

Luísa, sentindo o abismo de emoções que ainda pairava sobre a amiga, se levantou da cama e começou a pegar suas coisas. Ela sabia que Alice precisava de um tempo para processar o que acabara de confessar, mas ao mesmo tempo, cada parte de si gritava para não deixá-la sozinha. As palavras trocadas eram como um portal para uma parte de Alice que ela raramente deixava os outros verem, e Luísa sabia que, agora, precisaria se tornar ainda mais presente.

Mesmo tentando manter a compostura, Luísa não conseguia esconder completamente a inquietação em seus olhos. A profundidade dos segredos de Alice era dolorosa até mesmo para quem ouvia, e Luísa sentia o impacto das palavras como se fossem suas próprias. Mas, naquele momento, tudo o que ela queria era ser um apoio sólido, um porto seguro para a amiga.

"Eu vou… eu vou voltar amanhã, Alice. A gente vai conversar mais. Vou te ajudar no que for preciso, prometo." Sua voz era um sussurro, mas com uma firmeza que só quem realmente conhece o peso da dor poderia entender. Luísa sabia que aquelas feridas não se fechariam de um dia para o outro, mas, por outro lado, sabia que sua presença poderia ajudar a amenizar a solidão que Alice sentia.

Alice olhou para ela, tentando forçar um sorriso que mal alcançava seus olhos. "Obrigada, Lu. De verdade… você é a única pessoa que não me deixou. Eu nunca vou esquecer isso e trate de levantar mais cedo amanhã em." Sua voz tremia levemente, e seus olhos estavam marejados, mas ela segurava o choro com todas as forças. Ser grata era algo que ela fazia com facilidade, mas ser vulnerável ao ponto de admitir a necessidade de alguém era diferente, e por mais que confiasse em Luísa, ainda havia uma resistência dentro de si.

Luísa deu um pequeno sorriso e pegou a bolsa, caminhando lentamente até a porta, como se cada passo fosse um pequeno adeus. Ao chegar à saída, virou-se mais uma vez, os olhos fixos em Alice. "Eu te amo, tá? Se precisar de mim, me liga a qualquer hora." Ela sabia que as palavras não eram suficientes, mas queria que Alice sentisse, ao menos por um instante, que não estava completamente sozinha.

Alice assentiu, um leve aceno de cabeça, mas a verdade era que ela não sabia se teria coragem de ligar. Havia uma parte dela que ainda acreditava que deveria enfrentar tudo sozinha, que pedir ajuda era sinal de fraqueza. Ela não disse nada, apenas observou Luísa sair e fechou os olhos por um momento, deixando que o silêncio voltasse a preencher o espaço vazio do apartamento.

Quando a porta se fechou, o vazio pareceu ainda mais esmagador. Alice olhou ao redor, e o ambiente, que por alguns minutos tinha se tornado quase acolhedor com a presença de Luísa, agora parecia hostil. As paredes pareciam se aproximar, e o ar frio parecia querer roubar a pouca energia que restava nela. O peso do passado, que por um instante havia se aliviado, parecia agora voltar com ainda mais força. Ela se sentou no chão, encostada na cama, e puxou os joelhos contra o peito, sentindo o frio da madeira contra a pele.

As lembranças dos pais surgiram de forma abrupta. Os rostos, as vozes, as risadas abafadas que pareciam ecoar em algum canto da memória, mas que ela não conseguia mais alcançar completamente. Era como tentar se lembrar de um sonho que vai se desfazendo aos poucos. Alice sabia que eles se foram, sabia que não voltariam, mas parte de si ainda tentava se agarrar a eles, à memória do que eles foram e ao vazio que deixaram. O alívio temporário de ter compartilhado sua dor com Luísa parecia não ser suficiente para preencher o espaço que os pais ocupavam.

"Vocês me deixaram", ela sussurrou para o vazio, como se pudesse acusar os próprios fantasmas de sua dor. "E eu não sei o que fazer agora. Não sei como seguir sozinha."

Mas sabia que as palavras não mudariam nada. O vazio estava lá, profundo e imutável, e ela precisaria conviver com ele de alguma forma. Não era uma questão de superação; era uma questão de sobrevivência. Tentou respirar fundo, mas o ar parecia denso demais. O coração batia acelerado, como se o próprio corpo tentasse resistir a toda aquela carga emocional.

Naquela noite, o apartamento escuro parecia se tornar um reflexo fiel da alma de Alice, mergulhada em uma luta silenciosa.

me ensina a amarOnde histórias criam vida. Descubra agora