O Cara

Capítulo Onze

A tempestade

O sol já estava quase se pondo quando nos sentamos na beirada do chão da casa na arvore. Ficamos ali por alguns minutos em silencio apenas admirando a vista. A luz alaranjada cobria as arvores e os telhados das casas. Olhei para o lado sem que ela percebesse. A luz do sol refletia no rosto dela, fazendo com que sua pele ficasse tão reluzente quanto bronze. Seus olhos que em circunstâncias normais eram tão escuros como a matéria negra que preenche o vácuo do universo, agora pareciam duas pérolas de obsidiana abrigando em seu interior uma luz dourada infinita. Quando notei que ela havia percebido meu movimento voltei os olhos para o horizonte. Ela suspirou.

-Então, o que você queria me contar ?

Engoli seco. Não era fácil trazer de volta aquelas lembranças, ainda mais depois de ter conseguido guarda-las em segredo de todos durante tantos anos. Estava prestes a revelar uma parte de mim que praticamente ninguém conhecia e sabia que isso me deixaria vulnerável. Caso Sarah decidisse espalhar meu segredo para as outras pessoas, certamente elas passariam a me olhar de outra forma, talvez até mesmo com um olhar de pena, o que me fez pensar em desistir de contar e inventar algum outro segredo bobo apenas para fazer ela esquecer do que eu havia dito, mas bastou que os meus olhos encontrassem os dela em meio aquele contraste solar para que todo medo e insegurança me abandonassem. Com os olhos fixos nos dela comecei a falar.

***

Quando tinha aproximadamente nove anos de idade, meus pais e eu morávamos Manhattan. Tínhamos um belo apartamento próximo ao Central Park. Tudo era ótimo. O único problema era que meus pais trabalhavam muito. Ambos os dois eram empresários, viviam viajando e só falavam sobre reuniões e contratos. Com isso eu passava a maior parte do tempo em casa com Beth, minha babá. Por sorte ela sempre me incentivou a ler e ter gosto pelos estudos, e se hoje eu sou tão inteligente, devo isso a ela.

Em outubro de 1999, meus pais estavam prestes a retornar para casa após uma viagem de 2 meses. Eles haviam conseguido fechar um acordo milionário com uma empresa árabe e aquilo mudaria para sempre nossas vidas, pois meus pais não precisariam mais trabalhar tanto, e sobraria mais tempo para ficar comigo. Me lembro que tudo aconteceu em um sábado. O telefone tocou pela manhã enquanto eu lia um livro de biologia para alunos da 6º série. Eu ainda estava na 3ª série, mas Beth sempre me incentivou a ler livros para crianças de idade mais avançada que a minha. No telefone, minha mãe perguntou se eu estava bem e disse que estava com saudades, e meu pai como sempre, me perguntou se eu estava cuidando da Beth com seu tom brincalhão. Eles desligaram o telefone dizendo que chegariam mais tarde. Passei o dia organizando os livros que eu havia lido nos meses em que meus pais tinham ficado fora. Me lembro que a pilha de livros era tão grande que ficou maior até mesmo do que eu. Queria mostrar o quanto eu havia estudado, no intuito de que eles ficassem orgulhosos de mim. Mas foi então que tudo aconteceu.

Parei de falar e permaneci em silencio por alguns instantes. Achei que depois de tantos anos seria mais fácil falar sobre aquilo, mas obviamente eu estava errado. Sarah permaneceu me olhando nos olhos com os braços entrelaçados em seus joelhos. Respirei fundo e continuei.

Naquele mesmo dia por volta das Três da tarde uma tempestade muito forte tomou conta de todo Estado. Fui até a janela do apartamento e vi muitas das arvores do Central Park sendo arrebentadas pela força do vento. Beth saiu correndo pelo apartamento fechando todas as janelas quando de repente o telefone tocou. O barulho do vento era tão forte que ela não escutou. Eu não tinha o costume de atender o telefone em casa mas naquele dia resolvi atender. Assim que aproximei o telefone da minha orelha só consegui escutar um som muito forte de vento e gritos desesperados por socorro. Assustado, apenas Disse ''alô?'', mas só escutava barulhos e mais gritos. Me preparei para desligar o telefone, quando ouvi a voz da minha mãe gritando meu nome.