Capítulo Vinte e cinco

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A carta


"Querido Fletcher, creio que esta é a última carta que escreverei na vida e fico feliz que seja para você. Sei que nesse exato momento você deve estar muito confuso. Sei também, que você provavelmente ainda tem muita raiva de mim e vou entender se você não ler esta carta até o fim, mas espero que você não faça isso, pois talvez essa seja minha última chance de explicar tudo a você.

Minhas mãos trêmulas indicam que meu tempo está se esgotando, então serei o mais breve possível. Como você bem sabe, depois da morte de sua avó Margareth me tornei uma pessoa ruim, fria e sem sentimentos, muito diferente de quem eu era. A verdade é que ao longo desses anos não teve um dia sequer em que eu não tenha desejado ter morrido no lugar dela. Sua avó era  a melhor pessoa que eu já conheci na vida. Ela era mais pura e rara do que todos os metais preciosos que existem no nosso planeta. Ela sempre foi a ponte que me conectava entre o mundo real e o mundo dos sonhos. Depois da partida dela eu enriqueci, conquistei um vasto patrimônio, mas eu daria tudo o que tenho hoje para viver um dia apenas com ela novamente. Eu fui o  homem mais feliz do mundo enquanto a tive ao meu lado. Posso não ter o dom de prever as coisas, mas sei que com certeza, se eu tivesse partido no lugar da sua avó, ela não teria se tornado uma pessoa tão ruim quanto eu me tornei.

Alguns anos atrás eu havia decidido mudar e voltar a ser uma pessoa menos dura e fria e por mais que seus tios só se importassem consigo mesmos e já haviam desistido de mim, seu pai por outro lado vivia me mandando cartas, me telefonando e me convidando para passar o natal com vocês. Ele sempre dizia que me amava, mesmo eu não retribuindo tal afeto. Seu pai foi o responsável por me fazer repensar sobre o modo que eu havia escolhido conviver com o luto de sua avó. Depois de muito tempo, eu havia decidido mudar. Estava pronto para sair mais de casa, voltar a dar amor para os meus filhos, até que aquele dia terrível veio.

Seu pai, meu filho primogênito e mais querido, me foi tirado num ato violento planejado pela vida. Naquele dia meu mundo desmoronou novamente. Foi nessa época que Beth trouxe você para morar aqui. Me lembro como você era pequeno e frágil e como era parecido com seu pai. Lembro perfeitamente do medo que habitava em seus olhos. O modo como você olhou para mim na esperança que eu pudesse cuidar de você, enxugar suas lágrimas e te livrar da dor que estava consumindo seu coração. Eu estava prestes a prender você em meus braços para fazer você parar de chorar quando me lembrei do quanto havia amado sua vó, e seu pai, mas ambos os dois foram tirados de mim. Percebi que todas as pessoas que eu escolhia amar sempre partiam antes de mim. Pensei que talvez fosse uma espécie maldição, ou algum castigo que Deus tivesse designado à mim pelas coisas ruins que fiz, mas não fazia diferença, o que importava é que eu não poderia arriscar perder mais uma pessoa amada, então não tive outra escolha a não ser fazer você me odiar, para que assim não tivesse nenhum vínculo de amor comigo e pudesse viver sua vida em paz. 

A dor que eu sentia em meu peito toda vez que pronunciava uma palavra dura contra você, ou quando te colocava de castigo me fazia chorar todas as noites. Você não sabe disso, mas diversas vezes eu ia em seu quarto durante a noite, passava a mão em sua cabeça e te dava um abraço com cuidado para você não acordar. Por diversas vezes também revirei sua mochila da escola e vi suas notas excelentes e seus livros todos repletos de anotações. Você não sabe o quanto eu sempre me orgulhei de você e o quanto eu sempre quis dizer isso. Saiba que estou em prantos enquanto escrevo essas palavras. Sei que é tarde demais para pedir perdão, e me envergonho por fazer isso por meio desta carta. Apenas preciso lhe dizer mais uma coisa. Estou deixando a maior parte da minha herança para você. Sei que nenhum bem material poderá reparar todos os danos sentimentais que causei, mas essa é a única coisa que ainda posso fazer por você. Fletcher, saiba que certamente seus tios tentarão de todas as formas tirar de você a herança que eu estou lhe deixando, pois sempre tiveram ciúmes do seu pai e essa raiva passará para você. Caso as coisas fiquem difíceis, procure por um homem chamado Diggory Clovis, ele mora em uma pequena casa de madeira no Colorado. Se você ainda tem alguma dúvida sobre mim ele poderá lhe dar todas as respostas. Caso tenha dificuldades, Ana poderá ajudar a encontrá-lo. Meu neto, seja forte. Embora sejam meus filhos, sei que seus tios não merecem essa herança tanto quanto você. Use-a com a sabedoria e o amor que herdou de seu pai e sei que você poderá fazer muita diferença nesse mundo. Sei que nunca te dei nenhum conselho mas gostaria de te dizer: viva intensamente e ame as pessoas que estiverem perto de você. A minha escolha foi a pior possível. Estou partindo sozinho. A vida é curta demais para vivermos isolados e sem amor. Se fizer isso, tenho certeza que um dia muitas pessoas serão gratas a você por tudo que fará por elas, e quando chegar o seu fim, sua mente estará repleta de lembranças boas e você poderá partir em paz. Ainda não sei onde sua vó e seus pais estão, mas estou prestes a descobrir. Saiba que onde quer que eu, sua avó e seus pais estivermos, estaremos orgulhosos de você.

Eu te amo.''

Eu poderia ter diversas reações depois de ler aquela carta. Me debruçar no chão e começar a chorar até não sobrar líquido algum no meu corpo era uma delas. Outra seria ficar ainda mais furioso com meu avô por ter fingido me odiar durante tanto tempo. Porém, por mais que eu quisesse sentir alguma coisa, meus pensamentos estavam confusos demais para esboçar qualquer reação. Embora soubesse que a letra daquela carta era do meu avô, na minha cabeça ele ainda era um homem extremamente duro e repleto de rancor. Eu precisava de mais um tempo para processar tudo aquilo. Sarah sentou-se ao meu lado. Entreguei a carta para que ela pudesse ler enquanto eu permaneci calado, refletindo sobre as últimas palavras que ele havia escrito em vida.

Aos poucos, algumas vagas lembranças vieram à minha mente. Lembrei de alguns acontecimentos durante minha infância, que até então para mim eram um mistério. Lembrei das diversas vezes que acordava no meio da noite e sentia meu cobertor úmido, o que agora fazia total sentido, pois eram rastros das lágrimas do meu avô.

Recordei-me das manhãs em que acordava e percebia que minha mochila havia sido aberta e meus materiais colocados fora do lugar. Os pontos foram se ligando e a imagem horrível que eu tinha do meu avó aos poucos começou a desmoronar, dando lugar a um pobre homem infeliz e solitário que apenas queria proteger as pessoas que amava.

Minha mandíbula travou quando senti uma lágrima escorrer pelo meu rosto. Sarah que havia terminado de ler a carta segurava meu braço e acariciava meu rosto. Dentro de mim, um duelo entre a pena e a raiva do meu avô. Se ele me amava tanto, porque havia me privado de receber amor quando eu mais precisei? Por um instante me coloquei no lugar dele para tentar entender porque ele havia feito aquilo. Olhei para Sarah discretamente. Pensei no que faria se a vida me tirasse ela naquele instante da forma mais violenta possível. Foi preciso poucos instantes para chegar à conclusão de que talvez eu teria feito algo muito pior. Abracei Sarah com força e as lágrimas começaram a escorrer pelos meus olhos. Ela chorava junto comigo e repetia que sentia muito. Aquela foi a primeira vez que senti o luto do meu avô. Foi como se num piscar de olhos ele se tornasse uma das pessoas que eu mais amava e no mesmo instante houvesse partido. Embora não tivesse o poder de voltar no tempo e salvá-lo de toda aquela solidão, eu havia herdado dele um último conselho, o qual naquele momento eu sentia que tinha mais valor do que todo dinheiro que ele havia me deixado. Respirei fundo até que o choro cessou. Sarah delicadamente enxugou minhas lágrimas.

-Preciso ligar para Ana. Vou me encontrar com esse tal de Diggory Clovis.

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