4. Desejo pelo Abismo

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Já conheço todos os professores que verei este ano e possivelmente no próximo. Como a grande maioria não pediu que nos apresentássemos, pensei que podia estar descansada no meu lugar com os meus pensamentos até que a professora de Inglês, uma daquelas professoras recém-formadas e cheia de ideias decidiu fazer vários joguinhos no primeiro dia de aulas. Mais do que criativa, parecia demasiado entusiasmada com as atividades propostas e quando pediu que nos apresentássemos, tornou-me o centro de atenções devido às minhas origens russas. Obrigou-me a dizer algumas palavras e duas frases em russos para seu delírio e comentários dos meus colegas que embora já não falassem tanto do vídeo ou da página de Facebook, ainda me lançavam alguns olhares repletos de ironia e alguns de malícia. Voltei a usar as minhas t-shirts velhas e a deixar o meu cabelo sempre preso.

A única amiga que tinha, a Kiara tentava sempre chamar-me para estar com ela, só que havia o Mário e definitivamente, não queria interferir. Os dois andavam cada vez mais juntos e se o desejo da minha melhor amiga era encontrar o amor e ser feliz, quem era eu para estragar isso como a minha atmosfera negativa? Sorria e desejava-lhe sorte.

- Preciso ser um outro para ser eu mesmo / Sou o grão de rocha / Sou o vento que a desgasta / Sou pólen sem inseto / Sou areia sustentando o sexo das árvores / Existo onde me desconheço / aguardando pelo meu passado / ansiando a esperança do futuro / No mundo que combato morro / no mundo por que luto nasço.

- Muito bem, Filipa. Vamos então à análise do poema.

A minha professora de Português tentava desesperadamente dar-nos a conhecer os grandes escritores portugueses, ignorados pela grande maioria. Aquele poema de Mia Couto tão simples e ao mesmo tempo, a meu ver, tão belo, para a maioria dos meus colegas não passava de um aborrecimento. Outros copiavam algumas frases e mesmo na aula, alguns decidiam atualizar o seu estado de Facebook como se estivessem a tentar mostrar aos amigos que liam alguma coisa. Não me considerava uma amante de poesia ou de um género literário em concreto, mas gostava de ler. Bons livros podiam fazer-nos viajar por horas e não havia sensação comparável àquela que um bom livro nos podia trazer. Acho que a nossa professora de cinquenta e poucos anos, baixa, gordinha e de óculos tentava passar essa mensagem que até eu podia ver que era ignorada. Apesar da maioria dos professores nem se dar ao trabalho de escrever no quadro, aquela senhora de sorriso fácil e voz suave costumava escrever bastantes pontos importantes para os mais distraídos. Ela mostrava uma consideração pelos alunos que mesmo assim, a chamavam de gorda secante pelas costas. Nem todos, mas já tinha ouvido comentários bastante maldosos acerca de uma mulher de cabelos negros e sempre presos num coque que sempre nos cumprimentava, mesmo que nos visse fora da escola. Nessas alturas, refletia acerca das pessoas que me rodeavam e sempre me rodearam, já que elas parecem estar em todo o lado. Lembrava-me de um episódio que marcou a minha entrada no quinto ano numa nova escola em Lisboa. Na primeira semana de aulas, durante um dos intervalos, um professor com idade já avançada subia as escadas que davam acesso ao edifício onde ficava a sala dos professores e respetivos gabinetes. Sentada num banco próximo, vi quando o senhor tropeçou e embora tenha mantido o equilíbrio para não se magoar seriamente, todos os seus livros e papéis espalharam-se na escadaria. Os risos ecoaram pelo pátio, onde os que pensaram em aproximar-se eram puxados por outros colegas que queriam continuar a divertir-se com o cenário. Outros simplesmente paralisaram e lembro-me de ter avançado sem pensar. Comecei a apanhar os papéis e notei mais um rapaz e outra rapariga a fazer o mesmo enquanto perguntávamos ao professor se estava bem. Ele agradeceu enquanto os três que decidimos agir, ouvíamos assobios e até insultos dos nossos colegas. Em que espécie de mundo vivemos em que ser maldosos e divertir-se como o sofrimento alheio é normal, mas ajudar e ser bom para com outra pessoa é visto como algo ridículo? Fui chamada de graxista, de queridinha do professor e esses eram os nomes mais simpáticos e tudo porque estendi a mão a alguém que precisava. Acho que esse episódio marcou algo na minha vida. A partir desse momento comecei a refletir acerca do que me rodeava: pessoas, situações, o mundo em geral e pouco a pouco, fui-me fechando. Não quis ser magoada e por isso, calei em mim todo o ruído que poderia acrescentar ao mundo. Acho que é nesse momento que a infância de qualquer pessoa acaba, no momento em que começas a pensar sobre o que te rodeia e concluis que nada era tão bom, tão inocente e tão simples como antes.

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