13. Correntes

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Passaram-se dois dias, desde da minha última conversa com o Vasco. Aquela em que a promessa de nunca deixá-lo e vice-versa ficou gravada em palavras, no silêncio e nos olhares cúmplices que trocámos o resto do dia.

Era a primeira vez que estava numa situação daquela com um rapaz e mesmo assim, ficava de tal forma embriagada por todas aquelas palavras e gestos que quando voltava à realidade, percebia que ficava cada vez mais à vontade na sua presença. Não precisava ponderar as minhas respostas. Não precisava cuidar a minha postura. Nada que fosse forçosamente superficial e agradasse os outros lhe interessava. Continuava a dizer que queria ver-me. Queria ver-me tal como era, sem correntes que me prendessem à monotonia de alguém que construí durante anos. A fachada que pedia e implorava para ser quebrada.

- Esperava mais. – Disse o professor de Filosofia parado ao lado da minha mesa e pousou a folha do teste à minha frente. Um onze. Numa escala de zero a vinte, devo dizer que onze não era o meu momento mais brilhante, mas era positiva e pouco me interessava se era uma positiva alta ou baixa. – No fim da aula, gostava de falar consigo.

Já sabia do que se tratava. Não era somente a nota do teste que incomodava aquele homem. Era o fato de eu ainda não ter aparecido na sala da psicóloga, assim como nem lhe tinha entregado o papel com a autorização para tal. O papel que teria que ser assinado pelo meu pai e que eu tinha rasgado.

Recordando-me desse momento, senti um frio desconfortável na barriga. Teria que inventar uma desculpa e dizer-lhe que tinha perdido a porcaria da folha. Porém, assim corria o risco que me desse uma nova e tudo o que queria era livrar-me daquela ideia de precisar de aconselhamento psicológico que pelos vistos, a Sandra tinha começado a frequentar. Quanto à amiga Júlia continuava em casa traumatizada com os acontecimentos, segundo diziam alguns. Cada vez que ouvia o nome dela, sentia uma curiosidade quase sádica de vê-la. Queria ver em que estado tinha ficado. Queria ver aquele rosto de que tanto se orgulhava, completamente coberto de cicatrizes. Se alguém daquela sala sequer imaginasse que tinha gargalhado ao lado do Vasco quando admiti em alto e bom som que o que mais queria ultimamente era ver o rosto desfigurado da Júlia. Talvez tenha sido o álcool, mas algo dentro de mim, queria rir. Queria divertir-me com essa situação e honestamente? Não me sentia culpada por isso, afinal era livre de pensar o que quisesse. Quem sabe assim, aquela rapariga nojenta aprendesse o que é ter cicatrizes cravadas na pele e pudesse ter um vislumbre do que é ter cicatrizes gravadas no corpo o tempo todo. Aquelas que ninguém era capaz de ver, mas que todos por algum motivo, guardamos em cantos recônditos dentro de nós.

- Porque ainda não me entregou o papel com autorização para ir falar com psicóloga?

- Perdi o papel. – Respondi com a voz trémula.

Não, não tinha perdido o papel e até aquele exato momento, tinha pensado que seria capaz de dizer, olhos nos olhos, que não tinha qualquer intenção de ir falar com a psicóloga da escola.

- Pensei que fosse mais responsável do que isso. – Respondeu o homem com o olhar frio do costume que sempre adornava os seus olhos azuis. – Não tenho outra folha comigo. – Senti um alívio que se esvaneceu com a frase seguinte. – Mas posso ligar e falar diretamente com o seu pai. Assim também tiro as minhas dúvidas sobre ter perdido o papel ou não ter entregado…

- Já lhe disse que perdi… - Falei, incapaz de o encarar diretamente.

- Sei que vocês não gostam da ideia de falar com psicólogos, mas ir até lá não faz de vocês maluquinhos. Às vezes, simplesmente precisamos de ajuda e falar com alguém. – Suspirou num tom cansado. – Evidentemente que existe um problema…

- Que não é meu. – Deixei escapar, recebendo um olhar pouco amigável do professor à minha frente.

- Não me interrompa quando estou a falar.

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