- Tentei abrir a porta, mas a coisa não está fácil. – Anunciou ao entrar na cozinha.
- Vamos sair pela janela outra vez? – Perguntei e rimo-nos. Não seria a primeira vez e era sempre caricato sairmos pela janela e ver outros vizinhos a fazer o mesmo. – Se tiver que ser, lá teremos que saltar pela janela. – Falei enquanto colocava as torradas num prato sobre a mesa.
Assim eram as manhãs de inverno na Rússia. Pelo menos não havia nenhum alerta de nevão que nos fizesse reconsiderar a saída de casa. Embora tenha que admitir que aquilo que os russos consideravam razão para não ir trabalhar era um tanto extremo. Consequentemente, já tínhamos ido trabalhar com tempestades inacreditáveis a decorrerem no exterior.
Desde que chegámos ali com a ajuda do Aleksei, o Vasco além de um curso intensivo de russo, concluiu uma licenciatura com Mestrado integrado em Administração e Gestão. Durante esse período, também trabalhou no sector de contabilidade de um escritório de advogados, onde ambos agora nos encontrávamos empregados.
Contudo, no meu caso, optei por uma especialização em secretariado e à vista de todos, era apenas isso que fazia. Se bem que muitas vezes era avisada pelo Aleksei que era necessário que usasse os meus conhecimentos em informática em operações fantasmas que continuavam a ser o meu forte e de onde vinha a maior parte dos meus rendimentos.
O escritório de advogados era um dos negócios que Aleksei tinha para manter as aparências e claro, para que caso houvesse algum problema, pudesse servir-se das artimanhas legais para escapar aos olhos da justiça.
Assim era seguro assumir que o Aleksei praticamente nos considerava como família. Sem ele seria impossível levarmos uma vida tão confortável. Em várias ocasiões, visitava-nos e até já tínhamos passado alguns natais e outras épocas do género juntos com ele e a filha dele.
Por vezes, o Vasco sentia que não fazia tanto quanto eu. Esperava que como eu tratava de algumas transações não-rastreáveis, ele também teria que fazer algo do género. Portanto, sentia que não contribuía tanto para a vida que levávamos. Durante algum tempo, a perspetiva de trabalhar somente no sector da Contabilidade e Gestão não lhe parecia ser útil o suficiente, uma vez que não “sujava” tanto as mãos.
Nessas ocasiões, Aleksei esclarecia que nenhum de nós tinha as mãos limpas e que ele era um ótimo gestor e que não devia preocupar-se com coisas dessas.
Assim era aquele senhor russo de aparência imponente aos olhos de quem não o conhecia ou merecia a sua confiança. Com o tempo, até o Vasco reconheceu que os seus receios quanto à nossa dívida para com ele não eram assim tao racionais, pois a única coisa que nos pedia é que não deixássemos a casa ou o trabalho que tínhamos sem falar com ele primeiro.
É fácil pensar que o fato de termos deixado que “controlasse” a nossa vida a esse ponto, fosse uma espécie de prisão permanente. Contudo, se tínhamos casa, trabalho e até tivemos formação durante superior era tudo graças a ele. Penso que o mínimo seria dar-lhe alguma satisfação se decidíssemos seguir outro rumo. O que não era nem por sombras, um dos nossos planos.
A vida que levávamos era confortável. Aliás, era tão confortável que ultimamente um outro lado que desconhecia do Vasco andava muito ativo.
- Pensaste no que te disse?
- Lá vamos nós outra vez. – Disse, rindo-me um pouco enquanto bebia um café bem quente. – A sério que nunca pensei que algum dia quisesses algo assim.
- Sim, sou mais comum do que possas pensar ou quem sabe seja da idade. – Falou comigo ainda a rir. – Quase trinta, Katya.
- Vinte e oito. – Repliquei.
- É uma boa idade para ser pai. – Afirmou sorridente.
- Quem sabe. – Comentei.
- A sério? – Perguntou entusiasmado. – Desta vez não disseste que não.
- Oh meu Deus, estás mesmo fascinado com a ideia. – Falei divertida e surpresa com aquele entusiasmo. – Quero ver essa alegria quando não puderes dormir durante a noite ou não pudermos sair. Trocar noites de sexo selvagem por mudanças de fraldas.
Desta vez foi ele que riu bem alto.
- Tens uma ideia tão má do que é ser pai e mãe.
- Realista. – Acabei o café. – Para te dizer a verdade, nunca pensei muito nisto de constituir família e nunca esperei que essa ideia viesse da tua parte.
- Mas veio e só estou à espera de um “ok” da tua parte. Aposto que darás uma mãe linda. – Disse e eu levantei-me para arrumar as coisas enquanto o ouvia sair do lugar. Em pouco tempo, ao colocar as nossas canecas debaixo da água quente para as lavar, senti os braços dele envolverem-me.
- Estás a tentar dizer-me que quando estiver gorda e a rebolar por aí vou continuar atraente?
Ele riu novamente.
- E porque não? Vais ser a bolinha mais linda de sempre.
Acabei por me rir e atirei um pouco de água para a sua cara.
- Sinceramente não sei se me estavas a elogiar ou a insultar, quem sabe ambos. Acredita que essa não é a forma de me convencer.
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Conexão
RomanceE se o desejo de mudar te levasse por caminhos que nunca pensaste percorrer?