Há exatamente três semanas, o Vasco tinha-me dado o seu número. Aquele que podia mudar tudo, ou melhor, aquele que esperava que mudasse tudo. Não obstante, tudo continuava na mesma e a culpa não era daquele vocalista que não deixava os meus pensamentos. A culpa era minha por não ter tido coragem de dizer-lhe alguma coisa e agora com o passar do tempo, ele já nem devia recordar-se do meu nome ou da nossa conversa. Afinal, eu era uma pessoa que se apagava com frequência da mente das pessoas. A minha presença não era marcante e sendo ele tão atraente e sempre rodeado de raparigas bonitas, o natural seria ter-se esquecido de alguém como eu. Portanto, continuar a pensar nele e naquele número parecia loucura. Aliás, até devia eliminar o número para ajudar-me e esquecer de vez, só que nem para isso tinha coragem.
A minha mãe já estava em casa e com bastante trabalho que a fazia ficar acordada várias horas. Já o meu pai embora ocupado com o seu negócio, tentava de todos os modos manter algumas reuniões familiares, mesmo que isso só acontecesse em uma das refeições durante o dia. Usualmente, o jantar. Podia dizer que até estava habituada a ter os meus pais dedicados ao trabalho, mesmo assim notava que o motivo que nos tinha levado até Lagos continuava a assombrar-nos ali. Pouco tempo familiar, já que o trabalho deles assim o exigia.
Por um lado, isso fazia com que as perguntas sobre os meus dias na escola fossem menos frequentes, por outro lado sentia-me cada vez mais só e silenciosa. Na escola não abria a boca e em casa também não havia ninguém para falar. Só na internet encontrava espaço para “falar” (escrever) e trocar impressões com pessoas cujos rostos eram um mistério e era assim que gostava que permanecessem. Nem Kiara, quem considerei uma possível amizade verdadeira parecia interessada no meu silêncio. O seu namoro ia de vento em popa e ela e o Mário não podiam parecer mais felizes. A sua visita à minha casa nunca chegou a acontecer por esquecimento dela e também porque não toquei mais no assunto, na esperança de que ela tomasse iniciativa. Contudo, todas as suas conversas comigo, quando existiam eram sobre como ela e o Mário estavam felizes. Aliás, do fundo da sala, do canto da biblioteca, na fila para o refeitório só podia observar como todos pareciam felizes e eu era apenas empurrada para um cenário apagado, sem conteúdo, sem interesse. Isso levou-me a pensar que a felicidade tem uma componente egoísta porque quando estás feliz, parece que não vês ou não queres saber se os outros estão ou não. Mesmo não quisesse pensar assim, sentia como a Kiara, o Mário e outros rissem da infelicidade alheia e esfregassem dia após dia tudo aquilo que eles tinham e eu nem sequer podia tocar.
- Amanhã queres vir mais cedo para estudarmos para o teste de História? – Perguntou Mário enquanto corríamos na aula de Educação Física. Os dois costumavam correr ao meu lado e algumas vezes, perguntavam ou comentavam alguma coisa, mas nada de me fizesse falar muito já que estavam mais interessados um no outro.
- Disseste que também tiravas boa nota a História e então, achamos que seria uma boa ideia, estudarmos todos juntos para ver se vocês os dois conseguem ser a minha salvação. – Brincou Kiara.
Assenti e continuei alheia à conversa. Queria ter dito que não. Queria ter dito que não se lembrassem de mim só quando precisassem de alguma coisa, mas ali estava eu calada mais uma vez. Qual era o meu problema? Porque para os outros era tão fácil dizer que não e ser antipáticos e eu não conseguia fazer o mesmo? Ainda bem que íamos para a casa a seguir. Aquelas seriam as únicas aulas do dia que começou com Inglês e acabava com exercício físico forçado. Detestava Andebol e a uma semana da avaliação continuávamos a fazer as aulas sempre da mesma forma: dez a vinte minutos de aquecimento, seguidos daquele jogo onde ainda não tinha pontuado uma única vez, mas pelo menos acertava nos passes.
- Vamos dar uma volta e depois…?
- Tenho que ir para casa. – Interrompi a Kiara antes que pudesse terminar mais um convite que ela sabia que recusaria. Seria assim tão difícil de perceber que não queria passar parte do meu dia a ser testemunha da felicidade dos outros enquanto afogava-me silenciosamente nas palavras que estavam presas na minha garganta? Cansada daquilo, cansada pela aula, dirigi-me lentamente para casa. Mais um dia passado e perdido, à frente do computador. Nem ao menos quis pegar nos livros de História para rever a matéria. Estava cansada de o fazer nos últimos dias e antes de deitar-me, apenas peguei no telemóvel para enviar uma mensagem à Kiara. Menti. Disse-lhe que não ia poder ir mais cedo para a escola e só nos íamos ver na escola quando a aula de Geografia começasse. Na verdade, queria ter dito que não ia porque não queria ir, mas como sempre, a coragem morria antes de sequer poder existir.
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Conexão
RomanceE se o desejo de mudar te levasse por caminhos que nunca pensaste percorrer?