5. Falta de coragem

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A conversa com o Vasco repetia-se incessantemente desde que nos tínhamos despedido. Encontrar-me com ele, logo naquele momento em que estava seriamente a pensar em desistir de tudo parecia até algo premeditado. Ao recordar cada palavra dita, por vezes, temia que pensasse que era demasiado cheia de mim. Afinal, tinha afirmado com convicção que sabia como ele se sentia, pois devíamos sentir algo semelhante. Porém, cada vez que o via, só podia descrever o seu olhar dessa forma. Deslocado da realidade e em busca de um lugar, assim como eu. No nosso íntimo, sabíamos que esse lugar não existia e no entanto, continuávamos a habitar na realidade, fingindo pertencer ali. Se fosse como outro rapaz qualquer, eu reagiria como sempre: tropeçando nas palavras, mexendo nervosamente nos cabelos e evitando encará-lo de frente por mais de três segundos. Porém, talvez estivesse anestesiada pela desesperança quando lhe disse tudo aquilo e tudo foi tão natural, como se estivesse a ter uma conversa silenciosa comigo.

Depois daquela conversa, voltei para casa e sob olhar preocupados dos meus pais, tive que explicar que tinha ido dar uma volta e perdi a noção da hora. Jantei ao lado deles para tranquiliza-los e até assisti um pouco de televisão ao seu lado, sem obviamente absorver uma só palavra que era dita. Na minha mente ainda borbulhavam as últimas palavras que tínhamos trocado. O seu número de telemóvel estava no meu telemóvel sob a promessa de pensar no que realmente queria fazer. Se quisesse mesmo adentrar num mundo desconhecido, bastava enviar-lhe uma mensagem ou ligar-lhe. Por algum motivo, o Vasco estava mais preocupado do que eu quanto às escolhas que queria fazer. Por mim, teria dito na hora que queria escapar desta realidade monótona e vazia. Mas ele quis que refletisse um pouco mais e avisou que assim que lhe desse uma resposta, não poderia haver qualquer tipo de dúvida. Penso que já lhe teria ligado ou enviado alguma mensagem, mal nos separámos, não fosse o meu medo irracional de o fazer. As minhas habilidades sociais eram mesmo limitadas. Pensava demais antes de responder ao que quer que fosse. Mesmo que a pessoa nem estivesse à minha frente. Esse era outro aspeto que gostava de poder mudar. Ser mais espontânea e decidida, sem traços de hesitação que comprometessem as minhas opções.  

Ainda que não tenha conseguido dormir parte da noite, despertei com uma estranha sensação de leveza. Como se ter aquele número comigo fosse a minha garantia de que tudo estava a um pequeno passo de mudar. Estiquei os braços e guiei os meus cabelos completamente desordenados para o lado direito, deixando-os escorrer sobre o ombro. Saí da cama e ao abrir o guarda-fatos, atirei umas calças de ganga para cima da cama e uma t-shirt justa de cor preta com grandes estrelas coloridas estampadas no tecido. Era mais uma peça de roupa comprada pela minha mãe com a esperança de que a usasse, em vez da minha coleção infindável de t-shirts e camisolas largas com cores neutras e perfeitas para passar despercebida. Ao constatar a pobreza de escolha nas minhas roupas, mais uma vez concluí que precisava de parar de pensar tanto na perspetiva das outras pessoas e atrever-me a ser mais egocêntrica. Será que algum dia poderia aventurar-me pela vaidade sem dar importância ao que outros poderiam pensar? Fechei a porta do guarda-fatos e tentei não forçar muito a mudança que tanto desejava. Talvez, o ideal fosse ir aos poucos ou parar com tudo aquilo e enviar a mensagem ao Vasco para que ele pudesse ser o motor da mudança. Porém, assim que os meus olhos passaram no meu telemóvel pousado na mesinha de cabeceira, senti um frio na barriga e optei por esperar mais um pouco. Abanei ligeiramente a cabeça e peguei numa escova, alisando os meus cabelos dourados que ao contrário dos outros dias, dessa vez, deixaria soltos. Precisava daquelas pequenas mudanças de hábitos para libertar-me da carga negativa, a minha companheira diária que desejei que naquele dia ficasse completamente de parte.

- Acordaste cedo, filha. – Notou o meu pai ao ver-me entrar na cozinha e colocou uma caneca de leite com café e duas torradas no lugar onde costumava sentar-me. De seguida, sentou-se no lugar imediatamente à frente do meu.

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