30. Primeiro contacto

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 A contragosto a minha mãe deixou que a acompanhasse até Portugal. Como o voo não ia diretamente para o sul de Portugal, acabámos por ficar no centro, em Lisboa. O objetivo seria ficar apenas duas noites antes de partirmos para Lagos.

No entanto, podia ver a reticência da minha mãe em deixar-me regressar à cidade que era responsável pela minha mudança. Algo que mesmo com as tentativas dela, não desapareceu com o tempo. A menina que não respondia, encolhia-se e aceitava tudo de cabeça baixa nunca mais voltou. Portanto, ocasionalmente, discutíamos se discordássemos em alguma coisa. Nada de muito grave porque estabelecia um limite que não estava disposta a ultrapassar. Quer quisesse ou não admitir abertamente, precisava dela. Até começar a trabalhar e conseguir a minha independência teria que suportar algumas coisas.  

Após a chegada ao aeroporto de Lisboa, fomos para um hotel de cinco estrelas que me trouxe novamente as recordações de outros tempos. Aqueles em que acompanhei o Vasco a locais como aquele. Agora que estava em Portugal, a vontade de vê-lo era ainda mais intensa. Pensava que mesmo à distância seria o suficiente, mas depressa outros pensamentos assomavam. Aqueles que diziam que queriam abraçá-lo, beijá-lo e tocar na sua pele sem nunca afastar os meus olhos dos dele. Queria toda aquela eletricidade que nos unia, a percorrer-me novamente. Porém, outra parte de mim dizia que nada seria como antes. Não podia ser tão simples retomar do ponto em que ficámos. O resto não podia apagar-se.

Se era verdade que os meus sentimentos por ele estavam a aflorar assustadoramente, também era certo que os ressentimentos também despertavam. Com certeza, tanto o Tiago como o Capela deveriam ter levado uma vida tranquila e afastada de problemas. Tal como aprendera anteriormente, muitas vezes a vida não é justa. Portanto, nem todos têm o castigo merecido. Isso faz com que seja a nossa obrigação tomar as rédeas do destino e atuar por conta própria. A vingança não iria destruir o passado, mas colocaria um senso de justiça em tudo. Não suportava a ideia de ter passado por tudo aquilo. Pior ainda, saber a impunidade em que tinham vivido, enojava-me.

Esse tipo de memória estava outra vez a fazer com que procurasse a única escapatória. Já o fazia mesmo sem estar consciente disso. A ponta do cigarro já roçava a pele já pouco sensível às queimaduras que apareciam umas atrás das outras. Elas que eram a prova, a evidência de tudo o que tinha acontecido era real e afetava-me. A única forma de suportar a ideia de ter o meu corpo irremediavelmente corrompido era aquela automutilação. Podia não ser saudável. Existia a hipótese de algum dia ir longe demais. Era consciente disso.

No entanto, algo sempre me impediu de dar o último passo. Aliás, duas coisas impediram que isso acontecesse. Queria ver o Vasco. Pelo menos uma última vez. Essa era sem dúvida a razão mais efervescente. Mas também queria fazer os seus amigos pagar pelo que tinham feito. Nunca quis tanto pisar em alguém. Era um ódio que por vezes, assustava-me a mim própria. Os pensamentos macabros que cruzavam a minha mente tornaram-se ainda mais constantes quando decidi que iria regressar a Portugal, ainda que fosse por pouco tempo.

- Vou ter com o meu advogado. Queres vir?

- Não. – Respondi, dentro da casa de banho onde ainda preparava lentamente um banho bem quente. – Ainda estou cansada da viagem.

- Então, pelo menos antes de dormir, depois come qualquer coisa. Posso demorar.

- Está bem. – Respondi com pouca convicção.

Não estava com muito apetite e na verdade, nem estava assim tão exausta. Penso que isso se devia sobretudo à minha agitação por estar tão perto daquele que influenciou tanto a minha vida e que infelizmente tive que deixar para trás.

Estar longe dele nos Estados Unidos, ajudava a controlar aquelas ânsias em vê-lo, mas agora sabendo que estava tão perto, iria perturbar-me. Como se algo dentro de mim quisesse recomeçar exatamente do mesmo ponto em que tínhamos deixado. Algo dentro de mim, acreditava que isso era possível. Para que isso acontecesse, bastava que nos encontrássemos e seria como uma faísca imediata. A mesma que nos atraiu nos primeiros instantes em que trocámos olhares.

Esse raciocínio quase romântico e obsessivo era bem melhor do que inverso. Aquele que me dizia que existia o risco de que agora me odiasse por ter partido sem qualquer explicação. Podia odiar-me por alguma história que os amigos tivessem montado. Será que se me olhasse nos olhos conseguiria ler-me tão bem como antes? Se assim fosse, saberia dizer se lhe estava a mentir ou não.

Entrei na banheira com água quente e em pouco tempo, dei por mim a esfregar freneticamente os meus braços e pernas. A esponja suave e criada para causar uma limpeza com total relaxamento, conseguia deixar marcas com a força que empregava. Continuava suja. Uma imundice que nunca desaparecia por completo e que me mantinha acordada durante muitas noites.

Mais tarde, depois do banho, vesti umas calças de ganga justas, vesti uma camisola de malha cinza e com alguns brilhantes, caída num dos ombros e por cima, coloquei um casaco de couro preto. A mesma cor que as minhas botas de pequeno salto também tinham. Peguei na minha carteira e telemóvel.

Precisava sair. Apanhar ar e quem sabe, cansar-me o suficiente para despertar o cansaço de uma viagem longa. Além disso, também queria distrair-me dos pensamentos tenebrosos que cobriam a minha mente. Esses que se misturavam com fantasias românticas que racionalmente falando, provavelmente não se realizariam.

Não me preocupei em deixar um recado para trás. Dar satisfações para canto que ia, irritava-me profundamente e esperava que pelo menos regressasse, antes que a minha mãe desse pela minha saída.

Entrei no elevador e carreguei no andar que me levaria até à receção e consequente, saída do hotel. No interior do elevador estava um senhor de smoking, cabelos grisalhos e os olhos presos a um Smartphone. Ao lado dele, estava uma mulher de cabelos negros bem longos e roupa bem colada ao corpo. Desde da roupa à maquiagem, tudo denunciava que se tratava de uma acompanhante de luxo. Se bem que nos dias que correm, distinguir isso de uma mulher com autoestima torna-se complicado. Embora, na minha modesta opinião, existisse uma linha bastante ténue entre autoestima e a putaria.

O perfume forte e enjoativo que aquela mulher usava fez-me puxar pela gola do casaco para cheirar o perfume que levava. Bem mais discreto e que rezei que fosse o suficiente para impedir-me de vomitar ali dentro. Determinados tipos de perfume não deveriam existir. Ou as pessoas podiam ao menos ter o bom senso de não os comprar e muito menos utilizar.

O elevador parou em outro andar. Um casal entrou. Os traços ingleses e a sua língua nativa passou a ser a fonte da única conversa que havia naquele lugar. Olhei mais uma vez para os números dos pisos que faltavam até chegar ao piso térreo. Mais três e estaria longe daquela conversa inglesa sobre o bacalhau português e o perfume enjoativo da mulher que lançava uns olhares depreciativos ao homem que acompanhava. Provavelmente porque este dava mais atenção a um aparelho à sua frente do que a ela.

Quando finalmente as portas do elevador se abriram no piso pretendido, fui a primeira a sair. Com passos apressados e decididos, aproximei-me da entrada/saída e assim que coloquei os pés no tapete que estava perto desse local, ouvi:

- Está a brincar? É claro que o cartão é válido! Veja isso outra vez! Até parece que é a primeira vez que venho aqui.

Estremeci.

Parei de andar de imediato e voltei-me para trás.

Na receção, o local para o qual nem sequer olhei ao sair do elevador, estava um conhecido. Mais do que isso, a representação real de um ódio que mal conseguia conter nos últimos tempos. Não estava acompanhado. Pelo menos, não aparentemente.

- Por favor, tenha calma. Está a chamar a atenção dos hóspedes.

- E posso saber porque é que isso é problema meu? – Perguntou e nesse momento, olhou à sua volta para ver quem estava a assistir àquele momento caricato na receção.

Evidentemente que não era a única com a atenção à cena, mas claro que fui a que mais chamou a sua atenção. Os seus olhos prenderam-se a mim e a surpresa inicial, depressa se trocou com um olhar frio que recordava com clareza na nossa última conversa.

- O que estás aqui a fazer?

- Turismo, Tiago. Apenas isso. – Respondi com um tom tão neutro que não julguei ser possível reproduzir à sua frente.

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