Capítulo 1

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18/11/17, sábado, aproximadamente 23:48hs

       Eu estava extremamente feliz.  Moro no interior, do interior, do estado do Rio de Janeiro, mas em meus quase dezesseis anos de vida nunca havia nem posto os olhos na cidade maravilhosa, no Rio de Janeiro. Todas as vezes que meu pai prometia me levar algo acontecia: meu irmão aparecia querendo dinheiro para pagar por suas drogas, era necessário mandar dinheiro para minha irmã que faz faculdade em Minas Gerais, a energia ou a água é cortada, é preciso comprar comida... mas no fim de semana que vem seria diferente!
       No próximo sábado pegaremos um ônibus para o Rio e visitaremos até o Cristo Redentor! O pão de açúcar e o zoológico! A noite iremos para casa da irmã da minha falecida mãe, onde dormiremos e no outro dia passaremos pelos outros pontos turísticos antes de vir embora. Quem sabe até ir na praia? É o meu presente de dezesseis anos! No meu aniversário de quinze, ano passado, havia pedido para que juntassemos dinheiro para ir ao Rio. Mas ainda faltavam sete dias! Eu estava tão ansiosa e contando os as horas.
       — Querida, cheguei. — A voz do meu pai me tira dos meus devaneios.
       — Boa noite, papai. — respondo levantando do velho sofá de dois lugares surrado, o único de nossa pequena sala. — Já fiz a sua janta.
       — Obrigada, filha. — ligo a pequena TV que mais parece um caixote e mexo na anteninha tentando melhorar a imagem, mas não adianta nada então desisto e sento no sofá ouvindo ela chiar. Meu pai logo volta com seu prato de comida e senta ao meu lado.
       Papai é um homem lutador. Trabalha como ajudante de pedreiro durante o dia e pegou um serviço de garçom a noite para conseguir me dar a viagem ao Rio de Janeiro de 16 anos. Eu estudo de manhã, mas também trabalho depois do almoço até as sete da noite em uma lojinha de bijuteria do bairro. Aos sábados eu trabalhava o dia todo e como estava quase acabando as aulas eu trabalharia também o dia todo nas férias. Quando chego a noite como algo, faço os deveres da escola, dou uma arrumada na casa, preparo a janta e espero papai.
       — Por que esse sorriso? — pergunta papai virando para me encarar com seus grandes olhos azuis, uma das poucas coisas que eu herdara dele.
       — Eu estou muito animada com a nossa viagem do próximo fim de semana! — digo. Tenho que me controlar para não dar pulinhos. — Eu vou amar o zoológico! Será que tem um leão de verdade? E as cobras?
       — Sobre isso... — meu pai remexe a comida e desvia o olhar do meu. — Desculpe filha, mas tive que mandar dinheiro para sua irmã. Ela tem uma maquete para fazer e eu tive que mandar dinheiro, além de precisar de comida.
       — Ah! — mordo meus lábios e seguro as lágrimas. Não iria chorar na frente dele.
       — Me desculpe Kiara. — sinto sua voz tremer. — Sua irmã ligou e... Camille está desesperada. Ela tentou trabalhar, mas mal dormia. Ela queria desistir... eu não posso deixa-la fazer isso.
       — Tudo bem pai. — Eu quero apenas deitar na minha cama e ficar quieta lá. — Eu entendo, deixa para a próxima.
       — Eu sinto tanto por decepcionar você tantas vezes, filha. Mas Camille está quase no fim, não pode desistir. Não como eu fiz um dia.
       — Boa noite pai. Pode deixar as coisas na pia que eu lavo amanhã.
       Levanto no meio do que ele diz e saio da sala o mais rápido possível. Entro no meu quarto e me jogo na cama depois de trancar a porta. Não quero ouvir explicações sobre como Camille mudaria todas nossas vidas ou que assim que acabasse a faculdade arranjaria um emprego bom. Eu tinha saudades dela, não nos vemos há quatro anos desde que ela foi fazer a faculdade em Minas Gerais. Eu entendo todo o esforço que papai e ela fazem. Juro que entendo, mas isso não significa que não estou decepcionada.
       Eu sonho com essa viagem há anos. Não é apenas para saciar meu desejo de explorar o mundo. No Rio eu conheceria a minha tia, a única família e a única coisa que sobrou de mamãe, conheceria a cidade de onde ela veio. Onde nasceu, viveu e morreu. Havia meus avós maternos, mas eles desertaram a filha grávida aos 19 anos e nunca se deram ao trabalho de conhecer os netos. Nem sabia se estavam vivos para falar a verdade. Tudo estava muito bom para ser verdade. Faltavam apenas alguns dias para o sábado, mas minha felicidade já acabara.
       — Kiara? — papai bate na porta do meu quarto, mas fico quieta. — Ah, Kiara me desculpe.
       Finjo estar dormindo e ele logo desiste. Amanhã sairia bem cedo, não queria ver o sofrimento nos olhos do meu pai. O pior de tudo era isso: ver a falta de esperanças, a dor e o cansaço nos olhos de papai.

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