Jennifer
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Nós seguíamos estáticas, travadas, caladas, sentadas nas poltronas do carro sem dizer quase nenhuma palavra. Liguei o som na tentativa de deixar a atmosfera menos constrangedora, mas acabou se tornando uma tentativa falha.
— Vai o caminho todo sem trocar ao menos uma palavra comigo? Eu não mordo. — indaguei vencida pelo caos que o silêncio vindo dela me despertava.
— Desculpe, é que não estou em uma boa noite. Calar-me foi a melhor forma que encontrei para não desabar dentro dos meus próprios sentimentos.
— E o que te deixou tão mal? Não me diga que a comida que Liv fez estava tão ruim assim ao ponto de te causar indigestão? — com essa piada, ao menos consegui arrancar um sorrisinho dela.
— Não é nada disso... É que ver minha ex tão feliz na companhia de sua esposa me fez querer ir embora daquele lugar.
— Sua ex estava lá? Não me diga que você é ex da Laura?! Céus, a minha mana não deixa passar nenhuma gata que cruza o caminho dela!
— Não.. Não é a Laura. Eu na verdade só conheci Laura quando ela foi até a clínica em que eu estava. E bem, quando a conheci, ela já namorava Lívia. Estou falando de Eduarda, a namorada da garota que você conheceu no supermercado.
— Céus, o que aquela menina tem hein? Ela nem é lá grande coisa e tem a sorte de receber sentimentos de duas garotas tão lindas.
— Tudo que eu não preciso agora é ver você elogiando a Melissa. Já não basta Eduarda!
— Okay, desculpe! - calei por longos segundos e depois retomei a frase - Mas mudando de assunto, porque estava numa clínica quando Laura te encontrou?
— Eu estava fazendo um tratamento cirúrgico de reconstrução facial.
— Como assim? Você é tão linda! Nem parece que já passou por um tratamento desse tipo.
— Obrigada pelo " linda". Mas respondendo sua pergunta, eu passei anos em coma. Fiz uma série de cirurgias e morei um tempo nos EUA desconhecendo meu próprio passado. Mas a pior parte de tudo, é não lembrar de nada além do que leio e/ou me contam.
— Como assim? — perguntei perplexa entendendo pouco daquela história.
— É que perdi minha memória.. e desde então, vivo numa luta diária para recupera-la.
— E o que causou tudo isso? Um acidente? — chutei querendo saber um pouco mais a fundo daquela história que me parecia tão incrível.
— Não. — ela respirou fundo, tomou o ar e continuou sem me encarar... — foi por amor.
— Por amor? — repeti desacreditando nos meus ouvidos.
— Me joguei da sacada de um prédio por não ter conseguido lidar com o abandono de Eduarda. Durante quase 4 anos todas acharam que eu estava morta, mas na verdade eu estava em coma... Dai um certo dia, Liv e Laura conseguiram me localizar numa clínica especializada em cirurgias plásticas nos EUA. Na verdade, eu não consigo lembrar exatamente de tudo. Minhas memórias são completamente fragmentadas. Mas em resumo, acho que segundo o diário, foi isso..
— Céus, isso é realmente sério? É inacreditável a sua história de vida. Mas se me permitir uma nova pergunta, me diga, quem escreveu esse tal diário que conta com tanta riqueza de detalhes sua história?
— Eu mesma. Mas calma, eu não Previ minha morte e nem muito menos que um dia eu precisaria tanto dele... Até porque não tinha uma bola de cristal na época. É que antes de tentar suicídio, pensei em deixar algo que fosse parte de mim para Eduarda... E então deixei meus sentimentos mais puros escritos. Após minha suposta morte, Eduarda guardou meu diário consigo e quando voltei, ela me devolveu. Mas até hoje não tive coragem de ler por completo até a última página. Há muitas lembranças que me machucam e me cortam e me ardem o coração de forma dolorosa. Estou buscando coragem para termina-lo.
— Suas palavras são realmente surpreendentes! — falei com uma expressão surpresa. Nunca tinha ouvido uma história de amor tão forte e comovente. Era surpreendente que alguém fosse capaz de dar tanto de si em troca de um amor. Isso lhe custou quase que sua própria vida. Por mais romântico que pareça, é de certa forma doentio também. E é ainda mais cruel saber que mesmo após tudo isso, é com outra que sua amada está agora. É como se nenhum esforço tenha de fato sido válido.
Tentei evitar fazer mais perguntas, apesar de ter varias interrogações, acho que esse não seja em exato um dos assuntos que ela mais goste de falar sobre. Calei-me até finalmente chegar em nosso destino final. — Está entregue!. — falei conferindo o GPS enquanto tentava estacionar o carro.
— Obrigada pela carona. — ela disse antes de sair. Notei seu tom de voz trêmulo enquanto agradecia, como se estivesse prendendo o choro. Me preocupei! Sai do carro e antes que ela se perdesse do meu campo de visão, corri para alcança-la e perguntei: — Você está bem?
— Vou ficar. — ela disse lacrimejando.
— Sei que nem nos conhecemos direito e que é muito difícil confiar em alguém que você acabou de conhecer, mas sei reconhecer um choro preso há quilômetros de distância, pois sou mestre nessa arte. Quando perdi minha única irmã para um tumor cerebral, eu ficava prendendo o choro o tempo inteiro para me fazer de forte diante das pessoas... e sei que é exatamente isso que você está tentando fazer agora. Mas não precisa ter medo de parecer fraca. Eu sei o quanto foi forte até aqui. Chorar não é fraqueza alguma. Olha tudo que você viveu? Se ela não soube reconhecer isso, o problema maior é dela, não seu. Erga essa cabeça princesa ou sua corôa vai cair!
— Não é só por Eduarda, é por mim também. É pelas coisas que não consigo lembrar, é pela solidão. É pela vontade de me sentir especial para alguém... Desde que voltei ao Brasil, tudo que tenho feito é me sentir como uma peça fora do baralho na vida de todos, inclusive na minha própria.
— Eu te entendo bem sobre isso também. Eu voltei ao Brasil para tentar fugir de um relacionamento que vivi lá fora e que me machucou demais. Quando cheguei, achei que aqui eu teria um refúgio, mas na verdade vivo em pé de guerra com a namorada de Laura que morre de ciúmes de mim. Liv não consegue ver que Laura para mim é a irmã que a vida me tirou, e que seus ciúmes não tem fundamentos. Clara, você e eu somos duas que não conseguem se achar por aqui... Mas vamos ter um pouco mais de calma, a vida não pode ser assim tão dura, em algum momento as coisas passarão a dar certo, eu acredito nisso. — falei tentando amenizar sua tristeza.
Clara
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Ouvir as palavras de Jennifer me tranquilizou um pouco. É bom conversar com alguém capaz de me entender, ainda que um pouco. Após uma despedida, resolvi entrar no apartamento e deixa-la seguir antes que ficasse tarde e arriscado para ela voltar. O assunto entre nós estava bom, mas eu estava triste demais para querer continua-lo. Eu desejava mais que tudo ficar sozinha e apenas chorar, sem que ninguém pudesse me ver desabar em lágrimas, dores consizas, completamente entregue ao peso cruel da solidão.
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3 - Fénix, Renascida das cinzas
RomanceTerceira temporada do romance lésbico CLARA E DUDA.