Capítulo 3 - O diário

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Eduarda  

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Eu não posso acreditar no que os meus olhos dizem! Como posso estar do lado dela agora? Por que só agora Deus? Por que tanto tempo de espera? Estamos lado-a-lado neste momento, mas sinto que milhões de milhas nos separam. Não é de distância que estou falando, é do desconhecido. É estranha a sensação de que talvez não nos conhecemos mais como antes. Pelo espelho retrovisor do carro, vejo a minha vida passando como se fosse um filme. Tenho o controle da direção desse volante e posso decidir para onde vamos trilhar, mas com a minha vida acontece sempre o oposto, eu não consigo controlar os rumos que ela insiste em tomar. 

— Por qual razão você me odeia tanto?  O que de tão mal te causei?— ouvi a voz dela me despertar dos meus devaneios. Eu queria ser corajosa o suficiente para encara-la, mas eu estava amedrontada. Meu coração estava batendo tão forte que podia ser ouvido a quilômetros de distância. Minhas mãos soavam e escorregavam pelo volante do carro. Eu queria acordar e ver que tudo não passava de um pesadelo. 

Clara

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Por todo o caminho o silêncio dominava à atmosfera. Ela não conseguia falar nada e aquela angústia já estava consumindo dores no meu coração. Eu sentia o ódio em seus olhos e o mais angustiante de tudo era não entender o motivo. Eu precisava saber, mais do que tudo eu precisava entender aquela situação. Ela parecia angustiada olhando o caminho enquanto suas mãos seguravam firmemente o volante. Eu observava cada nova reação que ela ameaçasse fazer, e cada segundo de espera parecia uma eternidade. Sem mais esperar, respirei fundo e perguntei:

— Por qual razão você me odeia tanto? O que de tão mal te causei?— minha voz saiu trêmula e eu não conseguia encarar seus olhos enquanto a ouvia responder.  Eu estava com medo de mergulhar a fundo nessa história.

— Eu não te odeio. 

— Então por que esse comportamento?

— Eu estou confusa... Confusa como nunca estive antes!  Você age como se não lembrasse de mim, de nós e de tudo que vivemos. E sabe? — ela respirou fundo engolindo o próprio choro. — eu te invejo neste momento. Porque sou eu quem queria ter esquecido cada segundo miserável que vivi desde quando eu pensei ter te perdido até aqui. Eu queria não lembrar de cada lágrima, cada vez que me senti culpada por você ter tentado tirar sua própria vida...

— Espera.. Eu tentei tirar minha própria vida? — interrompi suas palavras com um olhar completamente surpreso. Eu não faria isso, claro que não faria. Faria? Céus, como assim? Meu tio me disse que havia sido um acidente e que aconteceu quando fui até a sacada de um prédio para admirar a visão da lua e das estrelas e acabei escorregando acidentalmente e caído. Ele mentiu para mim? Ele não mentiria para mim! Mentiria?  — Isso é loucura! Por qual motivo eu tentaria tirar minha própria vida? — eu a metralhava de perguntas e a cada segundo eu queria mais respostas. Minha mente estava perturbada. Flashes do passado voltavam de relances assombrando minha mente. Fragmentos de cenas que vivi vinham e voltavam a todo instante junto de pontadas dolorosas.

— Você realmente não lembra de nada? — ela falou pisando no acelerado de forma repentina me pegando de surpresa. — Nem ao menos uma vaga lembrança te sobrou?

— Não... é por isso que estou aqui: para buscar respostas que nunca encontrei. Minha vida está dividida entre o que consigo lembrar e o que não consigo. É como se eu tivesse começado a viver desde o dia em que sai do hospital, e só. Não consigo lembrar de nada que veio antes disso. Tudo que sei sobre minha vida é o que me contam e isso é terrível, pois acabei de descobrir que posso ter acreditado em uma versão falsa sobre a minha própria história. Meu tio me disse que tudo havia sido um acidente e acabei de ouvi da sua boca que eu causei tudo isso propositalmente. Estou confusa e não sei como agir ou pensar. Eu não sei em quem acreditar... eu estou com medo. — minhas palavras saiam conturbadas e entre soluços. 

— Eu sei em quem você pode acreditar. 

— Em quem?

— Na Clara do seu passado. —  ela falou girando o volante apressadamente como se tivesse lembrado de algo importante, seguindo por um caminho que eu desconhecia. 

— Como assim? — eu já não entendia absolutamente nada. — Para onde está me levando?

— Para o meu apartamento. Há algo lá que guardei esses anos todos e que te pertence. Ele vai te ajudar a descobrir mais sobre tudo que você viveu. — eu pensei em contestar e lembrar que essa não seria uma boa idéia, já que a ruiva podia me matar se descobrisse, mas é obvio que eu não faria isso. Se ela tem mesmo algo que pode me ajudar, e é meu, nada mais justo que volte para as minhas mãos.   

Eduarda

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Ela caminhava entre os cômodos do meu apartamento e seus olhos curiosos observavam tudo, como se estivesse tentando lembrar de cada coisa que vivemos ali. Mas quem lembrou fui eu. Foi inevitável não pensar em cada momento que compartilhamos: das pizzas de ovo na varando, do macarrão que queimamos em uma noite longa de sexo e amor. Era terrível a sensação de sentir como se a nossa história estivesse viva apenas dentro de mim, e virado pó dentro dela.  Eu me recusava a pensar e tentava a todo custa afastar aquelas lembranças. Era terrível ter que trata-la como se fôssemos completas estranhas. 

Fui até o quarto e busquei dentro da gaveta o único escape que tive nos últimos anos, e que agora estava voltando para as mãos de sua verdadeira e única dona. Eu chorava, chorava sem controle, porque eu sabia que a verdade séria dolorosa para ambas. Eu estou culpada por nunca ter ido atrás dela. Sinto culpa por não ter me recusado à acreditar nas palavras de sua mãe ao ouvi-la dizer que sua filha havia morrido. Eu devia ter procurado meio mundo e não ter me dado por vencida mesmo quando ela disse que sua filha já estava enterrada junto de seu pai em uma cidade longe dali. Culpa era o sentimento que mais me dominava naquele momento.

Eu entreguei em suas mãos o diário ainda manchado de sangue e seus olhos lacrimejando me olhavam fazendo meu coração sangrar também.

— Isso te pertence. — falei devolvendo-lhe o que de fato lhe pertencia. Nossas mãos se tocaram e o toque suave me fazia lembrar de cada caricia que trocamos. Seus olhos amedrontados me faziam lembrar da Clara que conheci. Aquela doce menina do passado. Agora consigo entender porque ela nunca voltou, ela não lembrava de tudo que vivemos. As lembranças que agora percorrem minha mente, foram completamente apagadas da mente dela. Ela não podia voltar para um passado do qual em suas lembranças nunca existiu. 

Eu só não consigo saber se o pior é a falta de lembranças ou o excesso delas. É torturante saber que a garota com quem compartilhei meus melhores momentos não os consegue recorda-los. É mais torturante ainda saber que quando ela finalmente lembrar, não será só as boas lembranças que tomarão sua mente, mas as dolorosas também... E ai, esses olhos amedrontados que agora me olham, vão me olhar com rancor e desprezo.. E não sei se estou preparada para isso. 

3 - Fénix, Renascida das cinzasOnde histórias criam vida. Descubra agora