Capítulo 4 - Ônibus

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Clara

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Um diário? Um diário escrito por mim no passado? Essa situação está cada vez mais louca! Folheando as páginas daquele diário, pude notar que eram realmente minhas letras que ali estavam. As manchas de sangue contidas nele me deixavam grandemente assustada. Sentei-me no sofá daquele apartamento e o abri logo após respirar fundo e me encorajar. Os olhos de Eduarda estavam vidrados em mim acompanhando cada uma das minhas ações. Seus pensamentos pareciam distantes e perdidos no ar. Entre as páginas, encontrei uma folha solta, algo como se fosse uma espécie de carta. Voltei meus olhos para aquela garota que continuava a me encarar sentada no sofá ao lado e com lágrimas ela assentiu para que eu lesse. 

Lágrimas começaram a rolar em minha face sem controle logo nas primeiras linhas. Eu estava diante de palavras escritas por mim, e senti uma dor e um pesar em cada frase. Naquele momento eu estava revivendo um passado que eu nem lembrava ter vivido algum dia. Eu estava diante de uma carta de despedida escrita por mim mesma, por mais irônico que isso pareça! Em cada palavra lida, fragmentos da minha memória começavam a fazer junções e deduções que até ali me pareciam absurdas, mas que agora estavam começando a fazer sentido.  

   

" Nesta madrugada, quando te vi sair da balada segurando a mão de outra e me tratando tão mal, eu senti que não significava tanto para a pessoa que mais significa para mim. Me desculpa por não ter me despedido, mas foi melhor sair sem bater a porta, sem dar avisos, sem dizer adeus, pra você não se assustar. Viver sem você era impensável para mim, tanto que eu me neguei a aceitar isso. Calma, minha decisão não foi sua culpa. Você tinha toda razão de decidir permanecer ou não na minha vida, e eu tinha toda razão de por ou não um fim na minha dor. É que de fato a minha vida se perdeu quando você parou de caminhar ao meu lado. Sem você não há lugar ao qual eu pertença. "

Lendo esse trecho, senti como um raio o flash da lembrança de Lívia e Eduarda saindo de mãos dadas de uma casa noturna. Céus, foi exatamente essa lembrança que tomou minha mente no exato momento em que encontrei com Lívia naquela clínica de cirurgias plásticas há dias atrás. Agora tudo me parece ganhar sentido. Minhas mãos tremiam e as lágrimas jorravam como uma represa sem fim. Tomei o ar respirando profundamente outra vez e continuei lendo...

"Lembra quando estávamos juntas deitadas na areia da praia após o luau em que você me pediu em namoro e você prometeu que seríamos para sempre? Eu acreditei. Lembra quando eu te prometi que eu te amaria para sempre? Eu cumpri. Eu te amei até meu último suspiro. Você me tinha tanto, que quando escolheu me perder eu somente pude obedecer. Meu amor por você é mais forte que a vida, que a morte e mais forte que a mim mesma. Desculpa por não ter lhe dito coisas lindas enquanto eu pude, enquanto estive no seu lado, mas se ainda há um pouco de tempo, estou usando o resto das minhas forças para escrever o quanto te amo. Talvez quando essa carta finalmente chegar em suas mãos o tempo certo já será: amei. Provavelmente eu já terei me tornando uma lembrança."

A forma como eu descrevia esse sentimento me fazia ter um medo profundo. Em nome desse amor eu seria capaz de tudo, até de tentar contra minha própria vida? Afinal, isso foi amor ou dependência? E o pior, será que tanto sentimento oferecido à alguém foi retribuído na mesma intensidade? Eu encarava Eduarda, mas ela fugia de olhar nos meus olhos. Voltei outra vez meu olhar para aquela folha amassada e prossegui lendo:

"Eu pensei em te ligar, mas tive medo que me tratasse mal como nas últimas vezes. Medo que sua noite com a Lívia esteja sendo tão maravilhosa ao ponto de a minha ausência não te causar nenhum desconforto. Eu por um instante me imaginei chegando em sua casa, fazendo um jantar romântico e em uma tentativa falha queimássemos novamente o macarrão por simplesmente não prestarmos atenção em mais nada quando estamos juntas. Tal qual como foi na nossa primeira vez. Mas tive medo que após isso você me pegasse pelo braço enrolada apenas em um lençol e me mandasse embora. Eu quis te lembrar o quanto é desejada, mas tive receios que me acordasse novamente com a fumaça de um cigarro, jogando dinheiro sobre meu corpo , fazendo questão de pagar pela noite, esbravejando que sou vadia. Quando eu perguntei na nossa última conversa se você realmente queria que eu saísse da sua vida e você assentiu, eu comecei a ver o quanto era cortante sua maneira de amar." 

Como eu pude ser tão tola assim? Recapitulando minha própria história, fui capaz de me jogar de uma sacada por alguém que me humilhou me chamando de vadia, me jogou fora de seu apartamento enrolada num lençol e que ainda foi capaz de passar a noite com outra enquanto eu assistia elas indo embora da balada em que eu também estava, sem que ela fosse capaz de se importar com meus próprios sentimentos? A cada palavra daquela carta, um sentimento ruim tomava meu coração. Eu não conseguia olha-la nos olhos. Eu estava enojada e com rancor. Talvez ter esquecido essa droga de passado fosse o melhor mesmo. Por que fui mexer nisso? Por que fui voltar e me magoar tentando juntar cada parte desse quebra-cabeça que a cada vez me parece mais absurdo? Eu me recuso a continuar lendo. Me recuso a reviver essa feridas que notoriamente me cortaram tanto anos atrás e me fizeram tão mal. 

Levantei-me do sofá e encarando-a e rasguei aquele papel que eu tinha nas mãos. Rasguei o diário e aos prantos  o joguei com toda a força contra à parede o que sobrou dele, e falei olhando nos seus olhos:

— Você nunca mereceu um amor tão puro quanto o meu. — eu não esperei nenhuma resposta. Eu só queria ir embora, sair daquele apartamento e ir o mais longe possível daquela garota. Eu queria me recusar a pensar no tempo que perdi num hospital, nas cicatrizes que ganhei, na mãe que perdi, no rosto que tive que reconstruir. Eu me recusava a pensar que tudo havia sido em nome de um amor que lendo agora, sei que nunca foi recíproco. Fui me desfazendo em lágrimas até a porta de saída.

— Clara, espera! Onde você vai assim? Olha seu estado, por favor não vá... — ela implorava enquanto seguia meus passos.

— Vou para o mais longe possível que eu conseguir de você. —  eu esbravejava tão alto que podia ser ouvida em quilômetros de distância!

— Você não pode sair por ai sozinha. Entra no carro? Eu te levo. Fazem quatro anos da sua vida que você não anda pelas ruas de Recife, não vou deixar que tente fazer agora. Não vou me perdoar se algo ruim te acontecer..

— Falou a garota que me deu motivos para me jogar de uma sacada... Isso é algum tipo de piada? — cada palavra que saia da boca dela, só alimentava meu ódio. 

— Eu entendo que esteja me odiando. Eu entendo mesmo, mas você também errou quando mentiu para mim. Nossa história foi uma junção de vários erros que foram resultando em todas as dores que acumulamos ao longo do percurso. Eu não sei se mereço ser perdoada, eu nem tenho coragem de pedir isso. Eu só não quero te deixar sozinha a vagar por essas ruas, porque eu ainda me importo com você. 

— Me deixa em paz! D-I-S-T-Â-N-C-I-A  é a única coisa que quero de ti. — falei aumentando a velocidade dos meus passos, fazendo sinal para o primeiro ônibus que encontrei em minha frente... deixando a imagem dela para trás enquanto eu a observava pela pequena janela de vidro.

Eu chorava e lamentava. Ignorando todos os passageiros daquele ônibus, eu só queria colocar meus sentimentos para fora. Minha mente estava mais perturbada que nunca! Minha cabeça doía e a pior parte era não saber exatamente o destino ao qual eu devesse tomar após ali. Eu me sentia presa dentro de um passado que eu desconhecia e que eu tinha medo cada vez mais de recordar.

3 - Fénix, Renascida das cinzasOnde histórias criam vida. Descubra agora