A rua James H. estava praticamente deserta. O asfalto molhado refletia o brilho das luzes dos postes e vitrines de pequenas lojas fechadas. Alguns carros passavam por ali naquele momento, mas eram poucos. Aquela não era uma hora muito apropriada para se estar na rua, mesmo em Karcosa, uma cidade tão pacata.
Um vulto sobrevoou a sacada de um prédio do quarteirão, rápido, preciso e voraz. Desceu com movimentos velozes pelas janelas exteriores do prédio, e seguiu até um beco escuro.
No outro lado da rua, um teatro. Um dos lugares mais renomados de Karcosa. Teatro Hallid Stekorov, várias peças famosas já haviam sido apresentadas ali. E mesmo estando naquela pequena cidade, era conhecido na região inteira.
Lágrima sabia quem encontraria lá dentro. Apertou seu cinto de lâminas e seguiu se esgueirando na escuridão do beco até o teatro. Se fundia as sombras facilmente, e se movimentava com uma velocidade fora do comum.
A porta do teatro estava fechada, mas ela não precisaria abri-la. Se concentrou enquanto corria até ela, juntou um punhado de pó escuro do bolso, jogou sobre seus cabelos, passando pela rua deserta e atravessando pela fechadura, como uma densa névoa negra que se materializava rapidamente e cruzava seu objetivo.
Estava dentro do prédio, e ouvia um som ao longo do corredor principal, não havia ninguém na recepção.
O Teatro Hallid Stekorov possuia um hall de entrada grande e bem iluminado, enfeitado por diversas máscaras que cobriam as paredes, e uma bilheteria fechada com cinco guichês, feitos de madeira de carvalho. O corredor que levava até a porta de entrada da sala de apresentações era coberto por um tapete vermelho, rubro como sangue. Havia também un elevador no hall, que levava ao andar superior do prédio. Porém, parecia desativado naquele momento.
A música vinha do salão principal, do palco. A assassina percorreu o corredor e entrou por uma porta secundária a direita, que levava à uma espécie de sala de funcionários. Estava destrancada, e cercada por ferramentas, que deviam ser usadas para a manutenção do teatro.
Ouviu risadas do salão principal, que percorriam até um duto de ar, na parede da sala de ferramentas. Foi até a grade do duto. Pôs a mão no bolso novamente, apanhou o pó negro e deixou escorrer sobre seus cabelos. Desmaterializou-se, tornando a ser a névoa negra que havia atravessado a porta do teatro, e entrou.
Percorreu as galerias do duto, seguindo o som da música e dos risos, não conseguia enchergar, muito menos ser vista, mas sentia que subia, e que estava perto. Atravessou uma outra grade, e a névoa negra se depositou no chão, transformando-se em Lágrima.
Encontrou-se em uma escura sala VIP, que ficava no andar superior do prédio, permitindo uma visão completa do palco, e também de parte da platéia.
A sala possuia algumas cadeiras, voltadas para o palco. A assassina foi até a sacada, que era protegida por uma meia parede, sem nenhum vidro. Olhou para o palco.
Estavam ensaiando uma peça, talvez a próxima a ser apresentada no teatro. Ela não conhecia os atores, mas sabia que não eram todos humanos. Eram por volta de cinco no palco. Na platéia haviam três pessoas, que riam da performance dos atores enquanto bebiam algo em suas taças. Ela reconheceu o alvo. Dorin Klasar, vampiro, vice lider do clã dos Ysires, protegido dos Northum. Possuia um longo cabelo liso e escuro, um anel com o brasão de seu clã na mão esquerda e uma tatuagem Northum na nuca. Sua pele era pálida e seu corpo esguio.
Ele sentiu o cheiro dela. Ergueu a mão esquerda, sinalizando para que a peça parasse.
-Parem! - Ordenou, com uma voz grave e autoritária.
Os atores pararam e ficaram atentos ao pedido de Dorin.
-Sinto suas veias pulsarem Lágrima. Veio me buscar? - Gritou para todos ouvirem.
Alguns atores sacaram adagas pontiagudas, facas, e outros sacaram suas garras. Tinham um rosto demoníaco, como de um monstro sanguinário, e grunhiam pelo prédio. As duas acompanhantes, que estavam ao lado de Dorin, não eram monstros, mas pareciam prontas a defende-lo.
Eram escravas de sangue. Mantinham um vínculo forte com Dorin, seu mestre, que cedia uma parcela de seu sangue para que elas bebessem. Assim, adquiriam habilidades especiais e se tornavam enfeitiçadas pelo seu mestre, prontas a protege-lo a qualquer custo, e realizar todos os seus desejos. Como um viciado que depende da droga.
-Não vai sair viva dessa vez! - Gritou ele. - Você quebrou o pacto!
As cortinas do palco se fecharam abruptamente, e os grunhidos dos lacaios de Dorin cessaram um por um. O vampiro estremeceu.
-Nós acenderemos Lágrima! Não pode nos impedir... - Interrompeu seu discurso ao ver as cortinas se abrirem.
Uma pilha havia sido feita com os corpos dos lacaios. Suas adagas e facas estavam cravadas em suas próprias costas.
Dorin se desesperou, parece que seu discurso havia mudado. Decidiu correr em direção a porta de saída, mas estava trancada. Olhou para trás e viu uma nuvem negra atrás de suas escravas de sangue.
-Atrás! - Gritou ele.
Elas se viraram rapidamente, desferindo um golpe na névoa escura, mas sentiram suas mãos se partirem ao entrar dentro da densa escuridão. Olharam fixamente, e viram o rosto dela. Seus olhos eram escuros, sua pele clara parecia enegrecida pela nuvem negra, seus longos cabelos so fundiam as sombras, e lágrimas escuras desciam sobre sua face.
Sentiram seus abdômens serem perfurados de uma vez só, e cairam sem vida. As lâminas curvas da assassina vibraram ao serem retiradas das vítimas, como se absorvessem suas essências.
O vampiro escalou o salão com rapidez, suas garras perfuravam a parede do teatro e destruiam o belo papel de parede que cobria todo o lugar. Um objeto pontiagudo perfurou sua mão e prendeu-a na parede, o vampiro guinchou de dor e caiu no chão, rasgando verticalmente sua mão na lâmina, ao deixar o peso de seu corpo o levar ao chão.
Correu para trás de alguns bancos, como um rato que se esconde do gato faminto. Sua mão não parecia se regenerar como deveria.
-Meu clã vai caça-la até a morte por isso! Vai pagar, assassina!
Escondeu-se por trás de um banco na segunda fileira superior, enquanto sacava um amuleto do bolso.
-Se sair daqui viva é claro! - Vestiu o amuleto com a mão saudável.
Olhou por uma fresta entre dois bancos e a viu caminhando no corredor do salão. Levantou-se rapidamente, e conjurou um feitiço avermelhado, que avançou na direção de Lágrima, mas não havia mais ninguém lá.
Sentiu algo abaixo de si, e quando olhou para o chão viu a névoa escura em seus pés.
Daily News Karcosa
20 de Setembro de 2016É com pesar que anunciamos a morte do nosso querido coordenador do teatro Hallid Stekorov, Dorin Klasar. Ele foi encontrado morto hoje pela manhã, entre os bancos do salão de apresentações. A causa da morte ainda não foi revelada, e os policiais ainda investigam o desaparecimento de mais cinco atores e duas garotas, que estavam presentes no teatro ontem a noite. Voltaremos a seguir com mais informações.
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Crônicas de Karcosa
FantasyTensões no universo mágico acontecem enquanto Alyoth, o Regente, busca resolver os mistérios da estranha cidade de Karcosa, se envolvendo em intrigas com criaturas mágicas pouco confiáveis, e desafiando seres inominaveis para manter o equilíbrio mág...