Liberdade

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As agulhas doíam muito, assim como a dor de reabrir velhas feridas que afetavam sua alma. Não sabia por mais quanto tempo resistiria, mas sabia que não morreria jamais. As agulhas que atravessavam sua pele e atingiam os ossos enquanto o Carrasco girava-as em torno de si mesmas, provocando perfurações profundas e dores absurdas nos ossos não parariam tão cedo, talvez até perdurassem até a morte do Carrasco, ou até a morte de seu superior.
Naquele frágil corpo felino, tudo era maximizado, até mesmo os sentidos da dor.

Estava sozinho agora, naquele calabouço imundo e abandonado, preso por várias fitas no pescoço e nos membros. Suas unhas foram arrancadas, e seus dentes serrados um por um, impossibilitando de rasgar as amarras. A restauração de seu corpo só se daria caso morresse, mas dadas as circunstâncias, não era capaz nem de suicidar-se.

O Algoz estava na sala ao lado, jantando coxas de frango empanadas, pelo que seu olfato permitia captar. Entraria em poucos minutos para torturá-lo novamente, caso ele ainda estivesse ali. Mas realmente não havia para onde fugir, ele forçou as amarras mas sua força não era o suficiente, as agulhas ainda estavam fixadas nos ossos, e movimentar-se causava uma dor imensa. Possuía por todo o corpo, na parte superior e inferior dos membros, entre as coxas, no pescoço e nas juntas, sem falar em suas garras, que além de arrancadas foram substituídas por agulhas que penetravam por toda a extensão dos nervos.

A porta se abriu, e o Algoz entrou. Suas asas asquerosas movimentavam-se de forma mórbida, como reflexos de um inseto recém-assassinado por uma chinelada. O Gato arrepiou-se e as agulhas rangeram sobre seus ossos. Jurou que quando conseguisse sair daquela situação rasgaria aqueles olhos granulados de mosca que refletiam o ambiente ao seu redor. O torturador tinha por volta de um metro e setenta de altura, a sua cabeça era como de uma mosca, com olhos granulados, grandes e esverdeados, assim como o resto de seu corpo, exceto o tronco e os membros que lembravam uma forma humanóide precária e asquerosa. Sua postura era semi-curvada, mas podia considerar-se ereta em relação à um quadrúpede.

O inseto vomitou no chão.

- Argh! - Murmurou, depois esfregou as mãos e deu uma risada. - Jáv mudouv de ideiav garotinhov?

O Gato não respondeu.

- Argh! Vocêv év muitov burrov gatinhov, vouv terv que torturav maiv vocev.

- Vá em frente. - Desafiou o Gato, e se arrependeu logo em seguida.

O Carrasco aproximou-se da cadeira onde ele estava preso, e começou a torcer as agulhas, revirando-as sob sua pele. Ele gritava, se contorcia, mas era pior.

A mosca divertia-se.

- Vocêv é engravçadov gritandov! - Torceu com ainda mais força.

O Gato sentiu um cheiro diferente no ar, diferente do cheiro podre da mosca que o torturava, e do fedor do vomito no meio da sala. "Até que enfim!"

Varus apareceu na porta, e ordenou que a mosca interrompesse a tortura.

- Turin, já tem sua decisão? - Perguntou, parecendo com pressa.

- Já. Você sabe qual é.

O Lobo estava em sua forma humana, a qual o Gato tivera poucas vezes a oportunidade de ver. Ele sorriu, e o torturador deu um soco sobre as agulhas que estavam no pescoço do Gato. Turin gritou, um grito estridente de dor.

- Pare com esta merda! - Gritou Varus, se aproximando e agarrando em uma das antenas da cabeça do torturador, que gritou como uma criancinha. - Some daqui!

O Gato ficou mais aliviado com a atitude de Varus, que possuía um semblante mais tranquilo, apesar de suas atitudes com o torturador.

- Quer sair desse lugar? - Perguntou o Lobo, com um olhar fanático.

- Veio me salvar? - O sarcasmo do Gato ainda continuava afiado.

- Vim tentar-lhe.

- Com a liberdade? - O Gato fitou os olhos de Varus - A liberdade me foi tirada há muito tempo, eu mesmo a entreguei. Essas fitas e agulhas doem, mas arrancá-las não me tornará mais livre.

- Pois é sobre isso mesmo que vim tentar-lhe. - Parecia contente, talvez por ter encontrado a solução para comprar o Gato, ou até mesmo por poder libertá-lo daquele lugar. Turin não sabia, os sentimentos do Lobo eram difíceis de ler.

- Qual é a proposta?

Varus caminhou pelo calabouço e juntou um vidro com álcool que estava no chão, pegou também uma caixa de algodão dentro de uma gaveta localizada num balcão junto a porta.

- Terá sua liberdade novamente, Turin, é isso que posso lhe oferecer. O fim de sua maldição...

O Gato interrompeu-o.

- Impossível. O pacto que fiz é irreversível, não há maneiras de quebrá-lo. Você mente.

- Um pacto novo poderia mudar tudo. O meu lado pode lhe fazer isso, basta aceitar.

Aquilo tocou-lhe, não devia aceitar, mas era tentador demais ao mesmo tempo. Sabia que havia desperdiçado anos por um erro, e pensava agora que talvez pudesse revertê-lo, ou que poderia também estar prestes a cometer um segundo erro irreversível. Seu coração era traiçoeiro, sabia que aquilo era orgulho novamente, egoísmo, a verdadeira maldição que o perseguia sempre, vivo ou morto.

- É verdade o que me diz? - Perguntou, com esperança de que o Lobo dissesse que estava mentindo.

- Sim, é verdade. Basta você aceitar.

O Gato baixou a cabeça enquanto Varus retirava as agulhas de seu corpo e pressionava os algodões molhados em álcool nos locais perfurados.

- Se assim for, eu irei.

Crônicas de KarcosaOnde histórias criam vida. Descubra agora