Seguiam à oeste, e a cidade parecia deserta, com exceção de estranhos eventos sinistros envolvendo mortes, assaltos, prostituição e mentiras, que surgiam como fantasmas pelas ruas de Karcosa. Por mais que estivessem em um universo paralelo ao convencional em que viviam, a cidade não se diferenciava tão grandemente em aspectos de clima. Era fria, escura e sem estrelas. Talvez a cidade já fosse mesmo paralela ao mundo real.
Alyoth conhecia Karcosa com a palma da mão, e já tinha certa noção de onde o amuleto os levava.
A pedra globular e cinzenta que compunha o centro do amuleto, protegida por um revestimento de Prata de Tarud (Elemento químico ultra-resistente, alterado pelo misterioso alquimista Tarud D'Salon), era chamada de Ylod-Rakknar, ou O Olho do Abismo. Alyoth só reconheceu-a quando ela abriu-se, revelando o tão falado Olho. Havia lido coisas sobre o artefato, que tinha sido roubado de suas origens há alguns séculos, e depois nunca foi encontrado. Boatos diziam que havia sido negociado em regiões da árabes no século XIX, com um Sultão louco chamado Abdul Sallasar. O Olho do Abismo mostrava a direção do destino do usuário, onde deveria ir, onde estaria dentro de algumas horas, minutos, ou até mesmo séculos, o que era bem útil, e perigoso. Não era o instrumento mais preciso para se guiar em mundos estranhos, principalmente quando se estava preso neles. O Regente perguntava-se como aquele mago havia conseguido um artefato tão peculiar. Mercado negro, era bem plausível.- Deve ter sido horrível. - Disse Alyoth, enquanto caminhava um pouco a frente de Vin, com o amuleto em mãos.
- O que?
- Como o rapaz morreu. Louis, o mágico.
- Ah sim, foi um ato heróico. - Disse ele sem muita emoção. Vin tinha os sentimentos dormentes.
Alyoth parou no caminho. Estavam em uma encruzilhada, vazia, via-se na entrada a direita, ao longe, uma cena de violência, vibrando suavemente como fantasmas sobre a cidade. Três jovens espancavam um quarto rapaz, que parecia desacordado.
- Eu devia ter sido mais rápido. Com a espada. Devia ter pensado antes. - Lamentou Alyoth, com o coração pesado.
- Não teve culpa. Você agiu bem. Eu tentei, mas foi de repente. Você não conseguiria salvá-lo nem se fosse mais rápido.
Aly suspirou.
- Eu era mais rápido. Tinha mais destreza quando era jovem. - Disse, olhando para uma elevação que se erguia mais a frente, para onde o Olho apontava.
- Todos temos a nossa melhor época, Aly. A velhice afeta a todos nós. - Confortou-o.
- O problema é que eu não envelheço, Vin.
Representava uma idade mais madura, por mais que estivesse em ótima forma física. Sua barba crescia desordenada pela face, o que lhe dava uma aparência surrada, mas não se via pelos grisalhos. Seu semblante, porém, denunciava a verdadeira natureza, estava cansado.
- As vezes não é só a velhice física que nos afeta. Eu, por exemplo, sou um jovem com uma mente madura demais para minha idade. - Brincou, dando uma risadinha.
Vin já possuia vários pelos brancos em sua face, e a própria também possuía várias marcas do tempo, das drogas, e da violência. Aparentava até ser mais velho do que realmente era.
- Pareço fatigado? - Perguntou o General.
- Parece. Mas não tanto quanto eu.
- Você não parece fatigado, por mais que seja um velhaco surrado. - Deu uma risada, coisa que não fazia a algum tempo.
- Vá pro inferno. - Disse Vin, rindo e caminhando até o amigo.
Alyoth levantou o amuleto e voltou a caminhar em direção ao morro, que se erguia no fim da encruzilhada, a estrada ali passava a ser de chão, algumas casinhas simples se abrigavam a beira do caminho que se transformava rapidamente em uma zona rural.
- Tem ideia do lugar que estamos indo? - Perguntou Vinny.
- Espero que não seja para onde eu imagino.
- Por que? - Questionou, curioso.
Já estavam no topo do morro quando Aly respondeu.
- Por isso. - Apontou para uma casinha de madeira apodrecida, que se encontava entre um vasto terreno coberto de mato.
Podia-se ver pouca coisa, na escuridão, mas a visão que Vin teve foi o suficiente para causar-lhe um arrepio. Era só uma casa, sozinha em um terreno de grama alta, mas algo o incomodava profundamente naquele lugar, algo feria sua alma.
- O que há ali?
- Eu não sei. Mas o Olho não aponta para a casa, ao menos. Sinal de que não devemos ir até lá. - Respondeu, enquanto olhava a paisagem indescritívelmente horripilante.
- Como assim não sabe? O que é este lugar? - Vin odiava segredos.
- Esse lugar não é visitado por ninguém. Existem algumas lendas sobre ele, mas o fato é que ninguém sabe ao certo o que é, ou o que tem de errado com aquela casa. Chamam de O Lugar Onde Nem Deus Está Presente.
- E o que diz o amuleto?
Alyoth consultou-o, e respondeu.
- Pelo visto não é lá que devemos ir. Vamos passar ao largo da casa, mas teremos que entrar nessas terras.
A cerca de arame farpado tinha falhas em certas partes do terreno, possibilitando a passagem de forma mais confortável, e foi por uma dessas partes arrebentadas que eles passaram.
Pisar naquele lugar causava uma sensação estranha, primal, ativava seus instintos de sobrevivência. Vin olhava para aquela pequena casa, que lembrava muito a que utilizaram para se comunicar com a coruja de Alyoth. Mas aquela casa que olhava agora era tenebrosa, esquecida, maligna.
- Você não pode me contar o que há de errado com esse lugar? - Insistiu para o amigo, não obtendo uma resposta de grande auxílio.
- Não sei de nada sobre esse lugar, somente o que lhe falei. Já vim aqui para investigar um vez, matar minha curiosidade, mas algo me impediu.
Vin parecia desperto por uma curiosidade fora do comum.
- E os humanos conhecem esse lugar? - Olhava para as vidraças quebradas da casa.
- Eles sabem da existência. Mas é um lugar abandonado tanto por nós, quanto por eles. - Respondeu, erguendo o amuleto novamente, e cruzando a terra maldita.
Vin seguiu-o, estava pensativo. Sua mente parecia abalada, seus sentimentos estavam afastados por um vazio.
- Logo vamos sair daqui. - Disse Aly.
A casa abandonada foi ficando mais distante, até que sumiu quando desceram por uma espécie de encosta. Logo abaixo via-se um pântano, encoberto por árvores incomuns, que causavam aos homens uma sensação de aflição profunda.
- Por que tudo aqui é tão merda? - Perguntou Vin, sem um vocabulário mais apropriado para referir-se a estranheza do local.
- Porque esse lugar não nos quer aqui. - Respondeu Alyoth.
Caminharam um pouco mais. Para onde está nos levando? Pensava Alyoth, até que pode enchergar sobre uma segunda elevação, a entrada do que parecia uma caverna. Nunca havia visto aquele lugar, e nem sabia se existia no mundo real, mas sentiu um cheiro diferente, não tão podre como o do pântano. Era algo doce, algo que fugia daquela cena de horror, um sonho em meio ao pesadelo.
- Olhe, Vin. É lá que devemos ir. - Apontou para a caverna.
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Crônicas de Karcosa
FantasyTensões no universo mágico acontecem enquanto Alyoth, o Regente, busca resolver os mistérios da estranha cidade de Karcosa, se envolvendo em intrigas com criaturas mágicas pouco confiáveis, e desafiando seres inominaveis para manter o equilíbrio mág...