Lobo de Nós Mesmos

22 3 4
                                    

"Os meus amigos e os meus companheiros estão ao longe da minha chaga; e até os meus parentes se põem à distância." - Salmos 38:11


A luz do luar iluminava a janela, e penetrava no quarto onde a jovem menina dormia. Isso o lembrava de uma cena, há muito tempo atrás, quando era ninguém, e mesmo assim era mais do que um dia já foi. Nuvens se moviam nos céus, ajuntando-se e tomando formas inconstantes, que se dissolviam e logo obtinham novas estruturas. Enquanto isso o agourento Gato escuro repousava no marco da janela daquela casa pequena. O vidro fechado. Estava do lado de fora dessa vez, diferente de tempos atrás, quando surgia em uma casa como aquela para fazer um convite à jovem menina que, um dia, viria a entregar seu coração, e sua imortalidade.

Lambia as patas e os ombros, seu banho noturno. Via dali, não muito longe, uma janelinha de banheiro. A ducha estava ligada. Nem lembrava mais da sensação de um banho descente, mas agora seu corpo odiaria água para sempre, então contentava-se com seus métodos.

"Por quê minha ambição foi tão grande?", pensava. A troca que fez, as vezes, parecia ter sido cara demais. Vivia uma vida miserável, de fome, dor e solidão acima de tudo. Sua esperança era vê-la novamente um dia, quem sabe. Compreendia que nunca poderia tê-la, mas poderia falar com ela. Talvez subir em seu colo. Era estranho. Sua maldição o afastava de qualquer um que o conhecia.

Quando Kayle quebrou o pacto dos Lua Sangrenta com os Rutsah's, Turin sabia que seu destino seria a perseguição infinita e o abandono total de seus irmãos. Escondeu-a então em um refúgio, facilitando sua fuga, que por alguns erros, acabou falhando miserávelmente e mandando-a para o Exílio tempos depois. Foi descoberto e julgado, um covarde que auxiliou na fuga de uma traidora corrompida. Perdeu sua imortalidade, o bem mais precioso que tivera obtido em toda a sua vida, portanto, decaiu completamente, e a angústia o tomou por completo. Sem Lágrima, sem a imortalidade.

De fato foi egoista, e arrependia-se disso, mas era como pensava naqueles tempos. Procurou então as Bruxas de Xirach'tar, terríveis enganadoras, conhecidas e temidas por todas as esferas místicas.

- Que queres Renegado? - Disse Alkhair, a Dama dos Mil Olhos.

- Quero a imortalidade de volta.

- Você fede a arrependimento, Turin. - Cuspiu em amargas palavras, Margareth, A Garra Maldita do Leste.

- E dúvida. - Acrescentou Alkhair.

- E egoísmo. - Finalizou Galra, A Peste Miasmática.

- Só quero a imortalidade novamente.

- Sabes que tens que pagar, Turin. - Disse a última.

- Pagarei.

- Metade de tua vida, é o preço. - Disse Alkhair.

- Queremos teu lado humano. - Completou a Praga Miasmática.

Por quê não negou? Podia estar em paz há muito tempo.

- Pagarei. - Foi sua resposta.

E ali estava, na janela do quarto de uma criança, limpando-se da caçada do dia. Pensava que o acordo de imortalidade não envolveria a dor, sua e dos que o feriam. Mas a cada vez que morria sentia toda a aflição de partir, e de arruinar vidas com sua maldição. Foram tantas as vezes que morreu, que em dados momentos lhe vinha um breve prazer, na esperança de nunca mais voltar. Mas sempre voltava. Ele pensou que elas tomariam sua forma humana, mas acabaram tomando sua humanidade também. Agora, o Gato já não se importa mais. Só lhe resta arrependimento e amargura.

Sentiu o cheiro da perversidade no ar, algo ruím estava chegando, ou melhor, algo que se tornara ruím estava chegando. A pressão do ar mudou.

- O que busca de mim? - Perguntou o Gato, para as trevas de um beco, progenitoras daquele cheiro que já se tornava familiar.

- Precisamos conversar um pouco. - Disse o Lobo, das trevas.

- Só converso com você onde posso enxergar. Mas pelo o que reparei em nosso último encontro, perdeu o gosto por me matar. - Respondeu o Gato, receoso.

- Matar você requer um preço amargo, tenho outros para satisfazer minha maldição. - Respondeu o Lobo pálido, enquanto saía da escuridão para a iluminação da rua.

Eram dois renegados, amaldiçoados por suas decisões. A maldição de um, matar e sentir o peso eterno da culpa, o outro, morrer e sentir o destino vingar-se eternamente, por sua culpa.

Viveram por séculos daquela maneira, cumprindo as maldições, um do outro, e sofrendo ambos. Mas agora o Lobo parecia ter perdido o gosto por mata-lo, e encontrado uma nova forma de obter sangue.

- Tem caçado outras vidas? - Perguntou o Gato. - Pensei que doía.

- O que eu mato é problema meu. - vinha em direção a janela a passos lentos - Preciso de você para outra coisa dessa vez.

O Gato permaneceu em silêncio.

- Podemos, enfim, ter nosso mundo novamente, nossas terras... - começou Varus.

- Não tenho terras, e esse é meu mundo, minha pena. Sabe que não me envolvo em assuntos políticos. - Respondeu com frieza.
- Não são políticos.

- Sempre são políticos, Varus. Se veio aqui para matar-me, sinta-se a vontade, já é tarde e estou fatigado.

O Lobo rosnou com um sorriso.

- Você não entende, Turin. Você vai me ajudar. - Seus olhos amarelados eram assustadores.

- Turin? - assustou-se - Por quê me chamou desta maneira?

Varus gargalhou, e uma gota de sangue se viu escorrer de sua boca.

- Seu passado pode não é mais segredo para mim, Turin, o Traidor.

- Meu passado não existe mais, Varus. Não existe mais Turin. - Estava apavorado, mas mantinha a postura.

- Mas existe um Traidor. - O sorriso macabro não deixava suas feições.

- O que quer de mim? - Disse finalmente.

- Você vai encontrar alguém para mim, por bem, ou por mal. - Olhos amarelos fitando-o constantemente.

- Quem? - Já sabia quem, só não queria acreditar.

Quando o Gato ouviu o nome, seu coração se partiu, assim como sua cabeça, quando recusou. Nunca uma palavra havia lhe ferido tanto.

Lágrima.

Crônicas de KarcosaOnde histórias criam vida. Descubra agora