Beijados pela Lâmina

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A garota suava frio. Seus cabelos estavam molhados, e sua pele encardida. Usava trapos velhos, que haviam lhe dado no início do rito de passagem. Os trapos iam diminuindo à medida que ela rasgava as partes, para fazer torniquetes.

Depois de cortar os pés duas vezes em pedras afiadas, conseguiu fazer uma espécie de calçado. Utilizou dois pedaços de casca de uma árvore esquisita, e algumas tiras de seu traje para fazer as sandálias.

O ritual de passagem dos Filhos da Lua era cruel e doloroso. Mas após assistir as demonstrações de batalha, e as habilidades que os assassinos tinham com suas armas no Pátio do Dragão, ela se convenceu de que valeria a pena todo aquele sofrimento. Afinal, não tinha como voltar atrás.

A floresta onde estava era traiçoeira. Havia chovido por muitas horas, e agora tinha cessado, dando lugar a uma fina garoa, que esfriava a alva pele de Kayle. A menina apanhou o punhal de pedra que havia feito, após sofrer horrores para matar um gato selvagem, pois estava morrendo da fome.

Seu avô era caçador, e lhe ensinara, em vida, algumas técnicas de caça. Ela adorava as lições do velho Krul, era seu avô materno. A mãe de Kayle se parecia muito com ele, assim como a garota. Era forte, perseverante e guerreira, e se houvesse a oportunidade de fugir ou lutar, morreria lutando.

Apesar do instinto de sobrevivência apurado de Kayle, possuía a consciência frágil de uma dama. Abateu o gato selvagem utilizando uma pedra, e por consequência disso, foi ferida múltiplas vezes nos braços e no rosto. Além de ter se sentido mal pelo próprio gato, e pelos métodos que usou para matá-lo. Não foi uma morte limpa, precisaria inovar suas maneiras para caso precisasse de mais comida. Foi então que amolou uma pedra pontiaguda e obteve seu punhal.

O sol sumiria em poucas horas, e ela estava indecisa. Não sabia se caminharia mais um pouco, ou se descansaria naquele lugar. Estava exausta, de fato, mas a vontade de alcançar o acampamento era maior. Seus mestres não lhes haviam definido um prazo para chegar lá, pois o requisito único para se tornar um Filho da Lua, era sobreviver a Floresta das Mágoas e chegar à Rubracolina. Podia levar o tempo que fosse preciso.

Estava ali há três longos dias, e decidiu que não pararia mais de caminhar, até que chegasse em seu objetivo.

Lembrou-se de sua mãe. Ela não desistiria nunca, se sua motivação fosse vingar a filha.

Cassandra, era seu nome. Kayle lembrava muito bem da cena de sua morte. Dos últimos momentos que sofreram juntas. Ela morreu pra me salvar, pensava a garota. Seu pai, Natanael, foi o primeiro a partir quando a guerra começou. Lembrava de quando ele chegava em casa a abraçava, e agora sabia que nunca mais poderia sentir o forte abraço de seu pai. Mas ela sofria calada, não abaixava a cabeça.

Esbarrava em folhas umedecidas e sentia o barro do chão sujar as pontas do seu pé, que não eram protegidas pela casca de árvore. Não se podia ver o sol, pois o céu estava coberto de nuvens, porém, sabia que não tinha muito tempo até que chegasse a escuridão.

Caminhava com cautela, qualquer passo em falso poderia lhe garantir um ferimento, e naquele caso, qualquer ferimento poderia lhe trazer a morte. Vamos lá, mais um pouco. Seus tornozelos doiam, e o gato selvagem não poderia suprir sua fome por muito tempo. Seu estômago começava a roncar. Afastou os cabelos sujos dos olhos, e prosseguiu.

Parou de súbito. Atentou os ouvidos ao seu redor, e segurou o punhal com força. Ouviu um som que não a deixou contente. Um ronco, uma bufada. O som aumentou, juntamente com o barulho de cascos vindo em sua direção. Olhou para trás e pensou correr, mas suas pernas não deram conta.

Um grande javali de presas esverdeadas lhe acertou em cheio, e ergueu a garota metros acima. Ela caiu de rosto no chão, e sentiu sua coxa esquerda molhada. A dor veio logo em seguida, pois o javali havia aberto um furo em sua perna no impacto.

Levantou o rosto e tentou avistar a criatura. O animal retornava, procurando sua presa, que permaneceu em silêncio, estirada no chão. Investigou-a com o focinho, e raspou a presa suavemente em sua face, deixando um corte, e uma dor corrosiva. Mas ela não reagiu.

A fera era gigante, e devia ter saído de alguma toca ao perceber a presença de invasores em seu território. Possuía pelos amarronzados, olhos amarelos, e suas presas eram de uma tonalidade verde, que a garota nunca vira antes.

O corte no seu rosto começou a fervilhar, assim como o rombo em sua coxa. A criatura empurrou-a com a cabeça, e virou a garota para cima. Ela conseguiu ver seu punhal, não muito longe, mas fora de seu alcance. Tentou esticar a mão quando o javali parecia não perceber, mas não alcançou. A dor continuava, e o desespero crescia. A fera subiu em sua barriga, era pesada demais, e a respiração da menina se precipitou.

O javali irou-se, ao ver que não estava morta, e posicionou as presas em seu peito. Ele quer me ver morta de qualquer jeito. Kayle se espantou, esticou-se o máximo que podia para alcançar o punhal de pedra. E em um momento de desespero conseguiu enfiar a arma no olho do animal, que ergueu a cabeça e guinchou de dor. Ele saiu de cima dela, deixando-a se levantar com dificuldade. Sua perna doía muito, fervilhava de dor, e seu rosto também. O maldito javali parecia ter veneno nas presas.

Ela tentou correr, mas só mancava vagarosamente na direção de uma árvore grande. Ouviu que ele se aproximava novamente, e desta vez foi atingida de raspão. Rolou no ar e caiu no chão pela segunda vez. Por sorte não foi ferida pelas presas, mas esmagou sua mão entre seu peito e uma pedra afiada. Gritou de dor.

O javali retornava com fúria, enquanto ela tentava se recobrar. Ele foi de encontro a ela, e se atirou em sua direção. Dessa vez ela pode prever o golpe. Segurou nas presas do animal, impedindo-o que a perfurasse.

A fera estava novamente sobre ela. Se debatia, jogando a cabeça para os lados, para desvencilhar as presas das mãos da menina. Ela gritava e segurava com toda a sua força. Lembrou-se do desespero de sua mãe no momento em que partiu.

A garota tirou uma das mãos da presa da criatura, apanhou uma pedra próxima, e começou a bater com a pedra sobre o punhal cravado no olho do monstro. Os dois gritavam, exaustos, machucados. Até que o punhal penetrou o crânio do animal, que cessou os movimentos e caiu pesadamente sobre ela. O sangue de sua cabeça escorreu sobre o rosto e os cabelos da menina.

Ela continuava gritando de desespero, dor, raiva e aflição. Chorava alto enquanto gritava, soluçava e tentava se livrar da criatura morta sobre si.

Com esforço, conseguiu empurrá-lo para longe de si. Levantou-se, com lágrimas nos olhos, e se arrastou pela floresta, na direção do acampamento.

O Comandante Alister e homens que lá estavam, avistaram a garota. Com trapos velhos e rasgados no corpo, mancando, e com o rosto marcado por sangue e lágrimas. Marchando em desespero na direção deles.

-Turin, apanhe roupas decentes, e mande trazer um prato de comida. A garota passou no teste. - Disse o Comandante Lidian Alister, ao seu escudeiro.

Crônicas de KarcosaOnde histórias criam vida. Descubra agora