O Bosque e o Alçapão

64 3 2
                                    

A garota pegou a pequena xícara de chá pela alça e levou-a a boca, erguendo o dedo mindinho enquanto sorvia o doce chá de Agnos, planta típica dos bosques de Lerion. Olhou pela janela do chalé e viu que o sol estava prestes a se pôr. Permaneceu sentada em frente á mesa, desviando os olhos da janela até que toda a luz se esvaísse.

Levantou-se e foi até a cama. Juntou as adagas curvas e prendeu em sua cintura. Olhou pela janela e viu a primeira lua surgir, se banhando na pálida luz que lhe tocava. Não era aquele o seu costume a algum tempo atrás, nunca havia prestado tanto atenção à lua, e se culpava um pouco por isso. Talvez, se tivesse se banhado mais em sua luz antes, nada teria sido como realmente foi. Agora tentava buscar um pouco de paz na luz pálida enquanto arrumava seus equipamentos. Estava pronta.

Foi até a porta e parou em sua frente, sem abri-la. Respirou fundo, viu o brilho vermelho entrar pelas frestas da porta e pelas aberturas do chalé. É chegada a hora. Abriu a porta, e a segunda lua havia chegado, rubra como a morte, anunciadora. A lua vermelha pairava na imensidão do horizonte, e Lágrima agora se banhava em sua luz perversa.

Vivia em um chalé na beira de um abismo, localizado em algum lugar onírico, no mundo dos sonhos. O chalé tinha sua frente voltada para um abismo negro, e do outro lado havia um bosque, repleto de árvores imponentes e coloridas. Durante o dia o bosque lhe fornecia caça e frutos, porém, quando a lua vermelha chegava, as folhas das árvores vertiam como sangue, e seus frutos pulsavam como mil corações, promovendo um maravilhoso e assustador espetáculo para os olhos das indefesas criaturas do bosque.

Lágrima se atirou no precipício. Alguns pensamentos vinham em sua mente, há muito tempo atrás pensara em tirar a própria vida. Quando se atirava naquele precipício imaginava que um dia seu fundo poderia não ter mais aquele alçapão.

Alçapão era como chamavam as passagens do mundo dos sonhos para o que chamam de mundo real. Eles se encontram geralmente no fim de abismos, prédios, ladeiras. Grande parte em ambientes relacionados à altura. Por isso quando alguém sonha que está caindo de um lugar muito alto, e ao tocar o chão acorda, provavelmente é porque caiu dentro de um alçapão.

Ela caía, sentindo a queda e a gravidade peculiar daquele mundo atrai-la para baixo. Tocou o fundo do abismo e atravessou a fronteira entre o mundo onírico e o mundo real. E lá estava ela, despertando assustada, como se tudo fosse um realmente um sonho.

Levantou-se do chão da caverna, onde havia submergido para o Khad, também conhecido como dimensão dos sonhos. Não dormira lá, tinha realmente levado seu corpo ao Khad, diferente dos terrenos, que deixavam seu corpo no plano físico e submergiam a alma ao mundo dos sonhos.

Tanto tempo no Exílio havia lhe ensinado alguns truques. Lágrima não atravessava os planos tão facilmente, pois haviam regras que ditavam essas transições. Mas tinha notado alguns padrões relacionados aos lugares onde esses "alçapões" se encontravam. Assim, poderia visitar o Khad com seu corpo físico, e voltar para o plano atual por meio desses atalhos.

Depois de algum tempo percorrendo as galerias escuras ela encontrou a saída da caverna. A saída dava em um pântano, aos arredores de Karcosa, e demorou muito tempo para que Lágrima encontrasse um lugar tão perfeito para submergir. Não saberia por quanto tempo poderia usar aquela passagem até que alguém lhe entregasse. Os Cinco Anciãos, que guardam os cinco níveis dos sonhos, não costumavam interferir na vontade dos seres mágicos, mas se alguém descobrisse o seu refúgio certamente interrogaria os Anciões. Não que isso fosse fácil, na verdade é muito improvável, mas, mesmo assim, possível.

Caminhou pelo pântano, e por um grande hectar de terras cobertas por grama alta, havia uma pequena casa abandonada, do qual Lágrima preferiu desviar-se. Avistou em uma grande depressão a sua frente, a cidade que procurava. Karcosa não era tão grande, era uma cidade de interior, bem iluminada em alguns lugares centrais e tinha poucos pontos turísticos.

Lembrou-se da época que era só uma simples menina, feliz e cheia de sonhos, até que tudo aquilo se transformou em um pesadelo sem fim, e ela tomara conhecimento de coisas que estão além da compreensão dos terrenos.

Curvou sua cabeça, mas não chorou.

Crônicas de KarcosaOnde histórias criam vida. Descubra agora