VINTE E DOIS

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Depois do incidente na sala de interrogatórios, Eric passou dois dias na enfermaria. Segundo os médicos que o atenderam, não tinha nada grave – havia exaurido seu organismo e precisava descansar. Também levara vários pontos nos cortes em seu rosto, que deixariam cicatrizes.

Uma semana se passara desde que deixara a Ala de Cuidados Médicos.

Abriu os olhos, impaciente. Estava cansado de se forçar a dormir depois de uma noite dividida entre o sono leve e a ansiedade que, insistentemente, trazia de volta à mente a lembrança do que ocorrera na sala de interrogatórios. Não conseguia, era verdade, digerir o que vinha acontecendo desde a morte de seu avô, mas colocar fogo em um palito de fósforo sem que houvesse qualquer explicação racional para isso ultrapassava qualquer limite.

Ligou a luz do quarto e deu de cara com Desligado, que o encarava. Estava ao seu lado, em modo de descanso, sem estar verdadeiramente ali – obviamente, aquilo o fazia ainda mais esquisito. Apesar disso, era no pequeno robô onde encontrava a maior dose de companheirismo – o que parecia paradoxal, para dizer o mínimo, já que ele não tinha sentimentos.

Não importava para quê, Desligado estava sempre atrás dele. Trazia-lhe café pelas manhãs, lia o jornal local – provavelmente um dos momentos mais engraçados do dia era ouvir uma voz eletrônica dizendo coisas sérias como: "Sobrevivente de massacre em galáxia distante revela, em entrevista exclusiva, detalhes de jornada árida pelos confins do universo" – escolhia seu uniforme e arrumava a cama. Quando estavam prontos, seguia o jovem pelo resto do dia. Não importava a tarefa que dele se exigisse: ajudava o novato com traduções de línguas estranhas, explicação de jargões, geografia galaxial e todo tipo de novidades com que ele se deparasse.

Fazia pouco mais de uma semana que as aulas haviam começado, mas fora suficiente para que ele descobrisse algo com relação a seu futuro: queria focar seus estudos em medicina multirracial comparada. Não que pudesse se dar ao luxo, com o currículo exigente da Ordem, de estudar apenas aquilo. Sabia, porém, que era nessa área que gostaria de atuar quando se tornasse um pesquisador de campo.

Mas ainda havia muito tempo para chegar lá. Dois anos de treinamento, para ser preciso. Se é que em dois anos as coisas estariam no mesmo ritmo – Eric já estava duvidando do que poderia acontecer no próximo mês.

Conteve o fluxo de seus pensamentos. Sentou na beirada da cama e espreguiçou. Em menos de dez segundos o despertador de Desligado soou, trazendo o robô de volta à vida.

- Senhor! Já de pé¿ Perdoe-me! Essa jeringonça que me acorda deve estar estragada outra vez! – Resmungou Desligado.

- Não se preocupe, Ligs – já criara um apelido para o amigo – eu acordei mais cedo do que o normal.

O rosto do robô ficou vermelho.

- Perdoe-me, senhor, mas já disse que não me chamo Ligs. É Desligado.

- Foi mal, Ligs – Retrucou Eric, provocando o robô.

Desligado fingiu não ouvir. Já percebera que a batalha contra seu novo senhor, quando se tratava de apelidos, seria inútil. Resolveu dar outro destino para a conversa.

- Dormiu mal, senhor¿

- Bastante!

- Ainda aquele assunto, lhe perturbando¿

- Exato. Eu sei que já deveria estar me acostumando com coisas que fazem pouco sentido, mas eu tenho a impressão de que por trás dessa, há algo ainda pior.

- Como assim, senhor¿

- Não sei, ao certo. Mas algo me diz que eu não vou gostar nem um pouco da explicação para isso.

Todas as Estrelas Cairão do CéuOnde histórias criam vida. Descubra agora