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— Concentre-se!

A menos cinco dias eu soube que teria que enfrentar muito mais do que sete reis, e mesmo que a ideia de enfrentar monstros nunca vistos e tudo que espreita pela escuridão da noite ainda me causasse náuseas, Hellviel ainda insistia em pensar que eu poderia ser treinada da mesma forma que um soldado qualquer prestes a marchar para as trincheiras em meio a uma guerra. Ele insistia em me dar ordem das quais não haviam sentido para mim. "Olhe isso; agora olhe aquilo; rápido, olhe aquilo outro." E inventava jogos que para mim comprovavam quanto a sua perda de sanidade afetara seu sentido racional. — Certa tarde, ele insistia em jogar várias frutas circulares em minha direção ao mesmo tempo, comandando para que eu desviasse das mesma. E se sequer uma delas me acertasse, ele bravejava até meus ouvidos começarem a doer. — Meu humor se fora com os esforços de todas as tardes inúteis e cansativas. Talick insistia que ele confiava totalmente em Hellviel e que o velho maldito sabia exatamente o que estava fazendo.

Agora ele insistia que eu acertasse um alvo com um arco e flecha, arma que eu jamais tocara uma só vez na vida. Caça e jogos com armas eram especialidades de meus irmãos, principalmente de Pitter e Schrader. — Lembrar de meu irmão mais próximo e do restante de minha família ainda me causa apertos no peito e um vazio no coração, mas eu sabia que estavam em boas mãos, Aaron cuidaria de todos. Mesmo que meus sentimentos por ele ainda fossem um turbilhão de emoções que causavam arrepios em minha pele e efervescência de meu sangue, eu sabia que não era o certo, mas confiaria minha vida em suas mãos, e sabe disso com tanta certeza me trazia paz ao lembrar que minha família estaria a salvo em sua proteção. — Saelor também preenchia uma parte de meus pensamentos; ele era a minha manobra de fuga. Se tudo o que Talick falara se mostrasse exatamente o que todos achavam ser, lendas, eu ainda teria uma escolha a fazer no final de meu prazo de sete meses, e cogitar a ideia de escolher a Saelor para poder estar mais perto de minha família e de Aaron se tornara uma ideia horrível, mas não impensável.

Suspirei deixando de lado meus pensamentos e podendo sentir a leve pena do final da flecha roçar de leve minha bochecha, a linha que une as duas pontas do arco já estavam flexionadas quando a soltei e pude ver a energia do arco flexionado se transforma na velocidade da flecha. Ela atravessou o Jardim e atingiu o terceiro círculo do alvo prezo a uma árvore no fundo, tão longe do centro... Mas para mim era uma grande façanha.

— Tente de novo — Hellviel disse firme.

Eu estava dando o melhor de mim, e para ele não era nada. O sol estava quente, o vento insistia em não soprar uma só brisa suficiente para me refrescar, uma linha fina de suor já escorria por minha coluna e eu fora "proibida" de usar os dons nos treinamentos sem que fossem solicitados por meu treinador insano.

— Eu estou tentando! — Falei em meio os dentes cerrados.

Hellviel ergueu uma de suas grossas e desordenadas sobrancelhas, como que, debochando de minhas tentativas inúteis de acertar um mesmo alvo várias e várias vezes, e parou a minha frente.

— Não é o bastante, criança. Tente mais!

— Isso é inútil. — Joguei o arco no chão. — Posso fazer muito mais com minhas próprias mãos do que com isto!

— Você quer dizer com seus dons — Hellviel disse calmo. — Mas permita-me te dizer uma coisa — ele encarou meus olhos. — E quando estiver lutando por sua vida e os dons insistirem em não a obedecer?

— Ridículo — discordei. — Por que ele haveria de não me obedecer?

O velho maldito gargalhou — gargalhou alto!

Sétima Filha - Beijada Onde histórias criam vida. Descubra agora