Capítulo 34 - Machuquei todos que eu amava

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 Ícaro

Coloquei o mesmo terno que usei no casamento da Alicia e consegui arrastar ela e o Lipe para o enterro. Expliquei tudo para ela, que desatou a chorar em meus braços e me controlei para não fazer o mesmo, eu já tinha esgotado a minha cota de lágrimas para uma vida inteira.

Recebi detalhes do enterro através de Theo, que fez questão de me manter informado já que virei praticamente seu conselheiro amoroso e como ele é filho do presidente, foi muito fácil para ele conseguir essa informação.

Decidi invadir o enterro com o meu terno amassado e a minha gravata com um nó mal feito, até porque de que adiantaria querer ficar bonito se a única pessoa na qual gostaria que me olhasse estaria trancafiada num caixão sem ter qualquer noção da minha presença?

Corri até lá, empurrando o portão branco de ferro já gasto e pisando na terra batida repleto de lápides e túmulos.

Um lugar deprimente demais para que uma pessoa tão cheia de vida quanto o Leo ficasse até apodrecer e ser comido pelos animais que ele tanto adorava.

Credo, que pensamento mais mórbido!

Só estava pensando assim para não pensar diretamente nele e em tudo o que eu estava perdendo. Quando finalmente o recupero, ele escapa novamente das minhas mãos e o perco da pior forma possível.

Para que ter esperanças se no final tudo vai ser uma merda?

Lipe me abraçou assim que hesitei, eu não queria continuar, não queria ver o Leo frio e sem vida naquele caixão e nem queria me desabar de tanto chorar em seu túmulo como se isso fosse resolver alguma coisa.

Eu só o queria de volta como o tinha há dois dias. Por que tudo o que era bom tinha que acabar? Por que tudo que eu tinha de bom na minha vida era tirado de mim da pior forma possível? Eu era uma pessoa tão detestável assim?

Lipe me guiou, enquanto minha cabeça enchia de perguntas que jamais me daria ao trabalho de me responder. Era apenas o meu jeito de manter a minha mente ocupada para não pensar diretamente no menino que recuperei e perdi com a mesma rapidez.

Fiquei encarando o chão como um idiota, não queria olhar para os túmulos nem para a cerimônia que acontecia a poucos metros de nós.

Lipe me cutucou com urgência e a minha vontade de dar um tapa nele por querer me obrigar a olhar para aquela cena tão dolorosa foi cessada assim que senti o abraço apertado que me envolveu na velocidade de uma piscada.

— Não sabia que estava aqui — revelou uma voz chorosa que reconheci de imediato. — Icky, desculpe por não ter te ligado, eu não...

E recomeçou a chorar com a cabeça afundada em meu ombro.

Eu me afastei dele e tomei seu rosto em minhas mãos completamente chocado. Acariciei seu rosto para ter certeza de que era ele mesmo e de fato era.

— Achei que estava morto — consegui murmurar para Leo, que me encarava com os olhinhos tristes.

— O quê? — ele fungou. — Não, meu pai quem morreu.

— Seu pai? — Lembrei-me do telefonema estranho e fiquei confuso. — Mas a mulher disse que o senhor Leonardo Antonio Borges faleceu.

— Sim, é o nome do meu pai — Ele chorava impiedosamente. — Meu nome completo é Leonardo Antonio Borges II. — Tentou limpar as lágrimas, mas não adiantou muito, já que diversas outras começaram a cair. — Icky meu amor, não sei o que fazer.

— Não precisa fazer nada — sussurrei, ainda inebriado pelo fato de ter me chamado de amor, me trouxe uma nostalgia que rapidamente esquentou meu coração. Ele tinha o dom de esquentar cada parte do meu ser. — Apenas chore, Leo.

Ele assentiu antes de pressionar a testa em meu ombro e tremer em meus braços. Era grande demais para que eu o sustentasse, mas fiz o possível para acolhê-lo. Minha ficha ainda não tinha caído, Leo estava na minha frente quando achei que estava morto e ainda estava em meus braços.

Eu até que tinha um pouquinho de sorte...

Beijei seu cabelo enquanto chorava e fechei os olhos com força antes de cantar em seu ouvido uma das músicas que escrevi para ele.

Eu já quase te perdi duas vezes, Leo.

E não vou deixar de forma alguma isso se repetir.

   Leo

O mundo desapareceu ao meu redor e a única coisa na qual me concentrei foi em Icky. Não queria mais pensar em nada, nem no fato de que perdi praticamente todo mundo que eu amava exceto ele.

Apertei-o ainda mais contra mim, apoiei meu queixo em seu ombro e fui tomado pelo cheiro que vinha de seu pescoço. Um cheio tão familiar que me fez virar o rosto e encostar o nariz nele para sentir ainda mais sem notar a estranheza do ato, afinal ainda estávamos em um enterro.

Tinha certeza de que já senti esse cheiro antes com a mesma proporção e com a mesma força. Sem pensar, encostei meus lábios na pele dele beijando e sentindo aquele cheiro que me encantou de imediato.

Rapidamente me lembrei da echarpe e das noites de sono que perdi por não ter mais aquela fragrância magnífica. Era a echarpe de Icky, só podia ser dele...

O pescoço, o abraço, aquela forma na qual ele me abraçava e como minhas mãos sabiam exatamente onde tocar como se conhecesse perfeitamente aquele corpo frágil e magro do meu Icky, foi imediatamente associado aos meus sonhos. Era a mesma segurança, o mesmo carinho, o mesmo amor...

Abri os olhos para ver aquele pescoço fino e ossudo que eu continuava beijando, ainda inebriado com aquele cheiro delicioso quando encontrei aqueles olhos assustados de Daiane, fitando a minha posição estranha e comprometedora com o seu cantor favorito.

Droga, eu tinha me esquecido completamente dela...

Ela, que estava comigo ali durante toda a cerimônia, que aceitou as minhas explicações fajutas. Que disse que me amava e que me ajudaria a superar tudo isso, que segurou a minha mão enquanto me debruçava no caixão ainda aberto chorando e balançando negativamente a cabeça, incapaz de aceitar o fato de que eu de certa forma matei meu próprio pai mesmo não sendo diretamente.

Como posso desapontá-la?

Como eu podia machucar todo mundo que me amava?

O problema não era eles, era eu. Eu era esse produto tóxico e defeituoso onde mil desgraças aconteciam ao meu redor. Eu era o monstro que deveria ser punido, toda desgraça na minha vida e daqueles que me amavam era por culpa minha.

Quase matei a minha mãe.

Praticamente matei o meu pai.

Machuquei o Icky mais de uma vez.

E certamente estava machucando Daiane também.

Empurrei Icky na mesma hora, com medo de que meu simples toque pudesse amaldiçoá-lo também.

— Desculpe — pedi aos dois olhando de Ícaro para Daiane. — Eu não devia ter...

Não concluí, apenas me virei sem olhar para nenhum deles e corri o mais longe que pude enquanto lutava contra as lágrimas de dor entaladas em minha garganta.  

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