III. Matriarca

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Lyssa não sabia exatamente como deveria comportar-se frente à Matriarca das bruxas. Nenhuma fada sabia.

Mas agora a velha de olhar duro e perverso a encarava, esperando que a jovem fada revelasse o motivo de sua presença na Gruta. Lyssa, com a postura submissa que lhe fora aconselhada, se curvara perante a maior das bruxas na esperança de que a reunião não fosse tão terrível e amedrontadora quanto suas irmãs a tinham feito imaginar.

Nascida há menos de quatro dias, a pequena fada mostrara destreza na magia do fogo e fora, quase que imediatamente, recrutada pelas Sentinelas — as bruxas que andavam por toda a Floresta Negra em busca de novos soldados para enfrentar os exércitos inimigos — e forçada a se apresentar perante Ode, a Matriarca.

Num primeiro momento, ficara emocionada e excitada. Seria uma guerreira, teria seu nome gravado na história junto às grandes fadas que vieram antes dela. Ao ver os rostos tristes e os lamentos de suas irmãs, no entanto, começara a perceber que talvez a designação não fosse tão gloriosa quanto ela imaginara.

A Matriarca pigarreou. O som mais se parecia com o raspar de metal contra pedra. Lyssa sentiu um calafrio lhe percorrer a espinha quando percebeu o tempo que passara calada, divagando a respeito do próprio destino.

— Ó Matriarca, fui ordenada a apresentar-me aqui pelas Sentinelas. — A fada falou, talvez exagerando na formalidade.

— Há tempos que minhas garotas não trazem uma fada. — A velha bruxa parecia cética e irritadiça. A voz era grave e seca. — Que sabe fazer?

Lyssa encarou o chão, insegura, sentindo a voz desaparecer. Que bela guerreira era.

— E-eu não...

— Fale logo, cria das árvores. — O etérial que se sentava ao lado da Matriarca urrou. Era provavelmente uma espécie de guarda-costas de Ode.

— Não sei exatamente o que sou capaz de fazer. Nasci há três dias e sequer sei voar. Suas sentinelas me escolheram, então provavelmente sou útil de alguma forma! — Lyssa disparou, atraindo olhares de todas as bruxas e outras criaturas que estavam presentes no salão principal da Gruta.

O etérial riu com escárnio e a Matriarca o encarou com ódio puro nos olhos negros. Ele se calou imediatamente. As outras bruxas voltaram a cuidar das próprias vidas e a conversar entre si. Lyssa ainda tentava decidir se tinha agido de maneira correta ao vomitar aquela enxurrada de palavras aos pés da bruxa.

— Veremos do que é capaz logo. — Ode falou, fazendo um sinal com a mão para que a fada a deixasse em paz.

Após uma rápida reverência, Lyssa já se virava de costas para a Matriarca, caminhando na direção da saída da Gruta, quando uma voz estranha falou mais alto que todas as outras:

— Suas Sentinelas devem estar realmente desesperadas, Ferro-Brasil. — Uma bruxa de aparência tão velha quanto a de Ode se aproximava, saindo do meio de suas companheiras e passando perto o suficiente da fada para que esta sentisse o cheiro de sangue que emanava de suas roupas. A bruxa anciã olhou com desprezo em sua direção. — Recrutar uma ainda tão jovem me faz pensar se você deveria mesmo ocupar o posto de Matriarca.

— Se não veio me desafiar, Fura-Coração, sugiro que vá embora e deixe esses assuntos para bruxas decentes. — A Matriarca respondeu, rispidamente.

Lyssa estava paralisada, encarando as duas bruxas mais velhas e tentando entender o que estava acontecendo. Boquiaberta, ela se assustou quando uma mão tocou seu ombro. As duas bruxas ainda se encaravam com ares de quem estava prestes a iniciar uma batalha letal ali mesmo.

A jovem bruxa que tocou seu ombro para chamar sua atenção tinha belos olhos verdes e cabelos negros como a noite mais escura, que contrastavam com sua pele quase branca. Ela era, pelo menos, vinte centímetros mais alta que a fada — Algo muito comum devido à baixa estatura destas —, e a olhava de cima para baixo com um olhar estranhamente meigo e amigável.

— Venha comigo, fada. — A bruxa falou, numa voz doce, simplesmente, e se virou para um corredor à esquerda do salão em que se encontravam.

Um pouco receosa e resistindo à vontade de assistir à discussão das bruxas, Lyssa seguiu a outra até que passaram pela reentrância que levava ao corredor escavado na pedra. O lugar parecia uma espécie de alojamento, com dezenas de portas de madeira escura preenchendo todo o comprimento do corredor à esquerda e à direita, enquanto que na ponta oposta à entrada, ficava a única porta de metal que a fada conseguia ver.

Quando as duas ficaram sozinhas, num pequeno quarto escuro que mais se parecia com uma cela, a jovem bruxa ascendeu uma luz mágica — ao menos se lembrara que as fadas não enxergavam no escuro tão bem quanto as bruxas — e sentou-se no que parecia uma cama, também de pedra, sinalizando para que Lyssa se sentasse ao seu lado.

— Meu nome é Alick, do clã Ferro-Brasil. — A bruxa se apresentou enquanto a fada se sentava e olhava ao redor, tentando absorver todos os detalhes do quarto, que não eram muitos. — Normalmente sou eu quem recebe novos recrutas. O seu nome é?

— Lyssa. — A fada respondeu, finalmente olhando para a bruxa. — O que foi tudo aquilo? — Ela não precisava explicar para que Alick entendesse do que estava falando.

— Algo que bruxa nenhuma gostaria que as outras raças vissem. — Ela parecia ao mesmo tempo envergonhada e irritada. — Ode, nossa Matriarca, é do clã Ferro-Brasil, do qual eu também faço parte. Ima é de um clã rival, as Fura-Coração. Ela costumava ser a Matriarca até que uma de suas bruxas causou uma confusão na Provação da Deusa alguns anos atrás. Desde então, Ima pressiona e ataca Ode de todas as formas possíveis numa tentativa de retomar o controle.

— Matriarcas podem simplesmente ser trocadas assim? — A curiosidade da fada começava a sobrepor o nervosismo causado por aquela situação estranha.

— Uma Matriarca pode ser deposta por um Desafio, que deve ser apoiado por uma Convenção de doze bruxas. A confusão na Provação da Deusa deu à Convenção de Ode o motivo que precisava para desafiar Ima. Minha rainha venceu o combate e tomou o trono. — Alick fez uma pausa. — Agora, Ima tenta arrumar motivos para que sua Convenção desafie a Matriarca.

— E no meio de toda essa confusão em que vivemos, vocês bruxas conseguem encontrar tempo para essas disputas internas? — Lyssa não pretendia ofender a nova amiga, mas viu que suas palavras a afetaram. A bruxa respirou fundo antes de responder, com toda a paciência que conseguiu reunir.

— Acabou de sair da Árvore, não? — A confirmação veio imediatamente com o aceno da fada. — Bem, em algum momento irá aprender que, quanto mais os elfos nos pressionam e perseguem, mais as disputas e inimizades internas se acirram. É assim que eles vencem, sabe? Nos quebram por dentro. — Alick levantou-se, alisando seu manto verde-escuro. — Entre as bruxas, isso ocorre com ainda mais frequência. Nunca fomos criaturas muito sociáveis, e esta guerra nos faz agir contra a natureza. Mesmo dentro dos sete clãs, costumava ser raro ver bruxas interagindo por mais que algumas poucas horas.

— Três dias de vida e ainda não ouvi uma única notícia animadora. — O comentário era irônico, mas verdadeiro.

— A primeira chegará, eventualmente. — Um sorriso discreto se abriu no rosto da bruxa Ferro-Brasil.

— Que não demore uma eternidade. — Lyssa se levantou também, encarando Alick com a cabeça erguida.

— Creio que não teremos tanto tempo para esperar. — Não era um comentário feliz, mas parecia depressivamente verdadeiro. — Bem, chega dessas besteiras. — Anunciou Alick. — Tenho uma floresta inteira para lhe mostrar, fadinha.

O receio e o nervosismo retornaram ao coração de Lyssa enquanto ela seguia a nova amiga para fora do quarto, pelo corredor de pedra e, finalmente, para o lado de fora da Gruta, onde a Floresta se erguia majestosa. As árvores brilhavam com a vida que emanava e pairava no ar. A fada absorveu aquela energia majestosa e continuou a seguir Alick rumo a uma parte da Floresta que ela ainda não conhecera.

Fura-Coração (COMPLETO - EM REVISÃO)Onde histórias criam vida. Descubra agora