IX. Sussurros

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Azar e os cinco sobreviventes se recolheram para dormir ao redor de uma fogueira, acesa às pressas pela própria Fura-Coração. Estavam cansados e os orelhas-redondas precisavam se recuperar, então decidiram parar e adiar sua chegada à Floresta para a próxima tarde. A noite estava quente e a mata ao redor silenciosa, da forma que estivera o dia todo, desde que a batedora encontrara o grupo.

Era um silêncio estranho, parecia artificial, e preocupava o fato de que Azar não conseguia identificar a razão para tal. Ao longo do dia, ela lançara feitiço após feitiço, tentando identificar a fonte daquela estranheza, frustrando-se tentativa após tentativa. As outras bruxas não pareciam preocupadas como ela — talvez estivessem cansadas demais para sequer notar qualquer coisa — e nada se podia dizer sobre os escravos que, além de não conseguirem expressar suas preocupações através da fala, não possuíam uma única gota de magia em seus corpos.

Agora, ao redor da fogueira, Azar encarava a escuridão além da claridade do fogo, sentindo que esperava por algo que não sabia exatamente o que era. Angústia era a palavra que a definia naquele momento. Não havia simplesmente nada ali — que ela pudesse ver e sentir, pelo menos — e ainda assim a bruxa tinha aquela sensação na base de seu cérebro que não a deixava em paz. A Segunda Visão era inútil. O que quer que fosse, estava no tempo presente e não no éter, no passado.

Distraída, a Fura-Coração não percebeu que Dust lhe dirigia a palavra.

— Ei, batedora! — A bruxa Flor-Invernal falava quando Azar finalmente voltou a si. A Fura-Coração a encarou sem responder, a indagação visível em sua expressão facial. — Pão?

Dust esticava um pedaço muxibento daquela massa velha em sua direção. Parecia mais velho que o que ela guardava na própria bolsa. Acostumada a comer pouco em suas patrulhas, Azar recusou educadamente a oferta.

— Onde as Flor-Invernal estão vivendo? — A pergunta estivera na cabeça de Azar desde que Ima Fura-Coração e a rainha das invernais tinham se desentendido, fazendo com que estas abandonassem a Gruta.

— Aqui e ali. — Respondeu Asmin, que aplicava uma das pomadas de Azar na perna ferida do orelha-redonda. — Quando a rainha Suri se desentendeu com a Matriarca, as Flor-Invernal voltaram a viver espalhadas, sem união.

— A única união que nossas garotas sabem demonstrar é na hora de arrancar a carne de pescoços élficos. — Completou Dust, que recebeu um olhar de Asmin que, para a Fura-Coração, parecia conter mais do que divertimento. Azar grunhiu, um tanto satisfeita por saber que ao menos um dos clãs ainda seguia os modos antigos. N'outros tempos, não era comum ver bruxas vivendo em grandes aglomerações, e somente a invasão élfica fora capaz de mudar aquilo.

— Como estão as coisas lá na Gruta? — Dreika não falava há horas. Todas olharam para ela, surpresas por ouvir sua voz.

— Mal. — Azar respondeu. — Ima não é mais Matriarca, Ode Ferro-Brasil tomou seu lugar e nossos números diminuem a cada batalha.

— Quase igual a quando fomos embora, então. — Dust comentou e as quatro bruxas riram da ironia.

Todos ficaram em silêncio por alguns minutos, e Azar aproveitou-os para olhar, pela primeira vez, com atenção para os escravos dos elfos. Eram criaturas medíocres, com corpos mais fracos e sem qualquer habilidade mágica, mais baixos e lentos que elfos e bruxas. A batedora se perguntava se aquelas criaturas poderiam um dia fazer frente a seus mestres e ajudar as bruxas na luta pela liberdade.

— Os elfos dizem que são um experimento fracassado dos deuses. — Dust percebera que ela encarava os escravos.

— O que você acha? — Azar perguntou. A Flor-Invernal deu de ombros.

— Acho que são algum tipo de aberração natural que deu certo. Pela habilidade que têm com trabalhos manuais, eu diria que são parentes distantes dos anões.

Fura-Coração e Flor-Invernal encararam, juntas, os dois orelhas-redondas que tentavam estabelecer alguma forma rudimentar de comunicação entre si. Um deles pareceu olhar com o canto dos olhos para as bruxas, tentando ser discreto, mas logo desviou quando percebeu que Azar o encarava.

Qualquer que fosse a magia que os impedia de falar, nenhuma das bruxas fora capaz de identificar, e agora eram obrigados a encontrar maneiras alternativas de expressar suas opiniões e necessidades. Pareciam amigos, os dois escravos, mas Azar não sabia dizer se era por necessidade de encontrar um porto seguro ou porque se conheciam e eram realmente companheiros em sua servidão.

— Você disse mais cedo que eles não falam nossa língua. — Azar falou, por fim.

— Tentamos ver se nos entendiam, ou se sabiam escrever. — Dust respondeu. — Demos tinta e pena para um deles e ele rabiscou umas runas que eu nunca vi antes. Mas não parecem compreender uma palavra do que falamos.

— Nos seguiram porque lhes oferecemos ajuda. — Completou Asmin. — Somos uma ameaça menor que os elfos, aparentemente.

— Talvez não conheçam o passado das bruxas. — Azar sorriu maliciosamente e as demais bruxas pareceram divertir-se ao lembrarem dos tempos em que caçavam as criaturas ao lado das quais hoje lutavam.

Pelo menos as bruxas agora estavam mais relaxadas. Quando as encontrara, Azar tivera a impressão de que estavam à beira da morte, ou de um ataque de nervos. Agora, conseguiam rir e descontrair um pouco com assuntos triviais, sem a ajuda de bebidas alcoólicas, o que era impressionante. Nem mesmo o pão velho e levemente mofado era suficiente para destruir aquele pequeno oásis de tranquilidade nos quais elas se encontravam.

Fura-Coração (COMPLETO - EM REVISÃO)Onde histórias criam vida. Descubra agora