Capítulo XXVIII

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  Quando comprei uma passagem para Deven comprei por impulso. Comprei porque Deven  foi o primeiro lugar que veio em minha mente.
  Mas, minha ideia não era buscar abrigo com minha mãe. Apesar de querer muito conhecê-la ela era uma estranha para mim. Na verdade eu não tinha se quer certeza se teria coragem de falar com ela, se eu conseguiria encontrar ela.
  Após minha fuga, tudo que eu queria era vê-la, ao menos uma vez. A viagem de três horas me deu a oportunidade de pensar com mais calma em tudo. Eu sentia que tinha feito o certo.
  Eu iria morrer de saudades do meu pai, do Caíque, da Denise, do Sr.Fillipo... do Diego.
  Deletei o último nome da minha mente. Eu os amava, amava-os com todo meu coração, mas eu tinha suportado demais por anos, vivi com medo e assustada, vivi sendo humilhada, e diminuída. Mas nunca meu coração tinha sido tão partido como dessa vez. E se tornou insuportável olhar para cara da minha meia-irmã, insuportável todas as humilhações da minha madrasta, insuportável suportar tudo aquilo. O melhor a fazer era ir embora.
  Pensei no que seria de mim agora, sozinha, sem destino. Mas eu teria tempo para pensar detalhadamente. Teria tempo para planejar.
  Assim que cheguei em Deven me informei de alguma lanchonete 24h e fui para lá, pedi um café forte e comecei a montar estratégias para encontrar minha mãe. Cheguei a conclusão que teria que andar de bar em bar até ter qualquer nova informação dela.
  E foi o que fiz.
  Meu primeiro dia de procura não rendeu nada que não cansaço. Fui até um hotel barato, me hospedei, tomei um banho demorado, troquei de roupas e me joguei na cama. Tentava manter a mente ocupada para não pensar em meu pai, meu irmão, Denise e claro, Diego. Mas era difícil. Muito difícil.
  No dia seguinte continuei na estaca zero e no outro também, entrei no mais recente bar que tinha descoberto, não estava mais tão otimista, e se não encontrasse nada hoje, tinha decidido ir embora. Também não podia dar bandeira. Achava que meu pai me amava o suficiente para que estivesse a minha procura. Mas com sorte, Liz conseguiria fazer ele me deixar em paz.
  Fui até o atendente no balcão, era um cara careca, que devia ter por volta uns cinquenta anos, tinha uma expressão carrancuda, mas eu não podia me acovardar agora.
  - Olá, bom dia! - falei - Eu...Eu gostaria de saber se o senhor trabalha aqui a muito tempo.
  Ele estreitou os olhos para mim. Mas respondeu:
  - Desde meus vinte anos, não que faça muito tempo que eu tinha...
  Eu sorri.
  - Ótimo! Então, o senhor...
  - Me chame de Mike, o termo senhor me faz sentir-me um velhote.
  - Tudo bem. Mike, você lembraria de uma mulher chamada Daphine? Daphine Thomson. Ela talvez cantasse aqui há uns dezessete anos...Ruiva...
  - Como poderia esquecer? - disse ele sua expressão se suavizando, tornando-se mais afetiva - Ela é minha sobrinha.
  - Sua sobrinha?
  - Sim, mocinha. E ela continua cantando aqui, não com tanta frequência, sabe, com o trabalho de enfermeira, o marido e o Ben, o filhinho dela.
  - Ah...
  Então ela tinha uma família.
  Por que isso me surpreendia?
  Senti uma dorzinha no coração, mais uma para conta.
  - O que quer com ela? - perguntou ele.
  - Ela é... Era uma amiga da...minha mãe. E como eu estou de passagem por aqui ela me pediu para saber dela. Só isso.
  - Quer deixar algum recado?
  - Na verdade...
  - Melhor! Venha a noite, ela vai cantar aqui hoje, às oito.
  - Hoje? Se der eu venho. 
  - Você me lembra ela.
  - Deve ser o cabelo. - falei - Enfim, não quero mais atrapalhar, muito, muito obrigada, sen...Mike.
  - Por nada, mocinha.

○○○

  Eu sentia um nervosismo que nunca em minha vida havia sentido. Cheguei no bar de sete e quarenta para não ter erro nenhum, me sentei em uma mesa mais escondida. Não queria que o atendente me visse.
  Sentia o coração batendo forte, as mãos tremiam.
  Ela entrou no bar. De alguma forma eu sabia que era ela, era linda, como meu pai havia dito. Foi até Mike, lhe deu um beijo no rosto e foi para o palco improvisado, ela ajustou o microfone para a altura certa. Deu boa noite e começou a cantar. A voz dela era linda. Tinha um timbre perfeito, me perguntei porquê ela não tinha investido na carreira de cantora, me perguntei quantas perguntas eu tinha para fazer para ela. Mas não faria nenhuma. Eu sairia de fininho e iria embora, pegaria o primeiro ônibus para algum lugar longe e começaria a reconstruir minha vida, sem ser um peso para ninguém. Enxuguei uma lágrima ao perceber que estava chorando. Eu teria uma boa lembrança da minha mãe. Levantei devagar da mesa onde estava, puxei o capuz do moletom para cabeça e sai do bar. Parei no sinal esperando que ele fechasse o mais rápido possível, mas aí ouvi algo que me fez paralisar:
  - Katherina?
  Engoli em seco várias vezes.
  - Katherina. - era ela. Minha mãe.
  Consegui ordenar minha cabeça a virar na direção dela.
  Minha mãe estava parada em frente ao bar.
  - Minha Kate. - disse ela abatida e um pouco pálida.
  - Eu... - tentei falar, mas a garganta se fechou de repente.
  Ela correu até ficar parada bem em minha frente.
  - Reconheceria esses olhos em qualquer lugar.
  - Você deve ser Daphine Thomson. - consegui falar.
  - E você deve ser Katherina Thomson. Bem mais crescida do que da última vez que a vi.
  Enxuguei as lágrimas do rosto.
  - Me desculpe, eu não queria... Incomodar... Eu já estava indo...
  - Ei, calma. Você não está me incomodando, venha comigo. A rua não é o melhor lugar para conversar.
  Eu assenti.
  A acompanhei de volta ao bar.
  - Eu disse que era ela. - falou Mike quando chegamos no balcão.
  - Você sabia...- comecei.
  - Sabia. - disse ele sorrindo - Conheço um Thomson a quilômetros, posso não ter cabelos hoje, mas eram tão ruivos quanto o seu e de sua... E da Daphine.
  - Tio, posso ir ao seu escritório? Quero conversar com ela, em particular. - perguntou minha mãe.
  - Claro. Podem ir.
  Ela me guiou até uma salinha pequena, que pela arrumação podia ser chamada realmente de escritório.
  - Eu não queria causar problemas, eu só queria vê-la uma vez. - falei timidamente.
  - Você não causou nenhum problema. - disse ela - Eu não vim cantar hoje, como Mike falou, mas ele me ligou dizendo que uma mocinha ruiva, de olhos diferentes tinha vindo a minha procura. Ele achou que fosse você e me pediu para vim.
  - Mas eu não dei garantia que vinha. - observei.
  - Ele disse que se fosse realmente você, iria vim.
  Mike era muito esperto.
  - Eu cai direitinho.
  Ela sorriu.
  - Sebastian sabe que está aqui?
  Senti um aperto no coração só de ouvir falar em meu pai. Nunca tinha passado tanto tempo longe dele.
  - É uma longa história. - disse apenas.
  - Eu não tô com pressa, você está?
  Eu sorri.
  - Nenhuma. Mas antes... Antes que eu comece a falar, preciso saber uma coisa, por quê? Por que me abandonou?
  Ela se encolheu e suspirou.
  - Por muitos anos temi essa pergunta, eu tinha pesadelos com ela. Acho melhor nos sentarmos.
  Eu concordei e sentei em uma cadeira, ela sentou em outra de frente para mim.
  - Quero que saiba - comecei - que nunca senti raiva nem nenhuma mágoa por ter me abandonado.
  Ela estendeu sua mão para mim. Eu segurei.
  - Eu tinha dezenove anos quando conheci seu pai aqui, nesse bar, foi ótimo, ele era lindo, Sebastian era o tipo de pessoa que te leva em uma conversa por horas e você nem percebe o tempo passar. - ele ainda era assim - A gente conversou por horas e rolou um clima, foi algo de apenas uma noite. Descobri mais ou menos um mês depois que estava grávida, fiquei em pânico, eu tinha sonhos, tinha planos, mas o pânico só durou dois minutos no máximo. Eu só tinha uma certeza naquele momento, eu teria você, e faria novos planos, você estaria em todos os meus sonhos. Meus pais já tinha falecido há dois anos em um acidente e eu morava com o Mike. Conversei com ele, sabia que era pedir muito que além de me dar abrigo também desse ao meu bebê, mas pedi. E ele aceitou. Cogitei falar com seu pai, contar a ele, mas falei com um amigo dele e esse meu contou que Sebastian tinha voltado e se casado com a mulher de quem ele estava separado e ela estava grávida. Desisti na hora. Eu seria sua mãe e pai. Com quatro meses descobri que teria uma menina. Você chutava o tempo inteiro - os olhos dela agora estavam cheios de lágrimas - e soluçava. Eu cantava para você e conversava muito. Comecei a comprar suas roupinhas, seu enxoval... Eu estava com nove meses, apenas esperando sua chegada, quando houve um roubo aqui no bar, um cliente afirmava que tinham roubado um estojo cheio de dinheiro dele. - as lágrimas começaram a descer pelo rosto dela - Eu estava aqui ajudando Mike, ele ficou nervoso e proibiu todo mundo de sair, chamou a polícia, bem a polícia começou a revistar todas as bolsas e encontraram o estojo com todo o dinheiro em minha bolsa. Fiquei desesperada, tentei explicar que não tinha roubado nada, mas não tinha como provar e Mike não podia ser meu álibi. Fiquei tão nervosa que a bolsa estourou, Mike me levou para o hospital acompanhada de dois policiais, você nasceu às três da madrugada, fiquei com você enquanto estávamos no hospital, chegou um mandato de prisão, então eu tomei uma atitude irresponsável e drástica, eu fugi com você do hospital, pedi para Mike te registrar e me escondi na casa de uma amiga. Katherina eu não tinha roubado aquele estojo, mas estava sendo acusada e fugir só me fazia parecer culpada, nem Mike sabia onde eu estava. Você tinha uma semana de nascida quando decidi que a única forma de provar minha inocência era me entregar, mas eu não tinha com quem te deixar, Mike não podia cuidar de você, ele tinha o bar, e me ajudaria a encontrar provas. Não podia pedir a nenhuma das minhas amigas, não tinha nenhum parente próximo e que eu confiasse para cuidar de você. Então decidi te entregar ao teu pai, mas não tive coragem de falar com ele e nem de deixá-la lá. Encontrei-me com Mike e acertei tudo com ele, escrevi uma carta, preparei uma bolsa com algumas de suas coisas e deixei você com Mike. Eu não podia obrigar seu pai a ficar com você, então deixei claro que ele poderia te entregar... A um lar... Mas eu tinha fé que ele ficaria com você.
  Eu também estava chorando.
  - Conseguiu provar sua inocência?
  - Depois de dois anos presa, eu consegui. Descobri que uma moça que trabalhava aqui, Sara, ela colocou o estojo em minha bolsa para me incriminar, ela tinha ciúmes de mim e Bruno, um amigo meu. A primeira coisa que eu queria fazer era saber alguma notícia sua, eu queria você. Mas tinha acabado de sair da cadeia, não tinha nada. Demorei um ano para me estabelecer, consegui um emprego, aluguei uma casa, e fui atrás de você.
  - Vo-você foi atrás de mim? - perguntei surpresa.
  - Sim. Você estava com três anos, era uma garotinha linda, esperta... Eu queria falar com seu pai, ia explicar tudo e pedir para ficar com você. Mas quem estava em casa era a esposa dele. Eu só precisei dizer meu nome e ela me entregou você como um objeto e uma bolsa, me disse que já era hora de eu ter ido te buscar. E eu te levei, trouxe você para minha casa, no primeiro dia você chorou de noite, chamava seu pai, mas eu contei uma história para você e você adormeceu que nem um anjinho, o outro dia também foi um pouco difícil para você, você era acostumada com seu pai e chamava por ele toda hora. Na noite desse dia, quase de madrugada a campanhia tocou sem parar e alguém esmurrava a porta, eu desci, vi pelo olho mágico que era Sebastian, se eu não tivesse aberto provavelmente ele arrombaria, seu pai parecia uma tempestade, estava furioso, exigiu a filha dele de novo, ele nem me deixou explicar tudo que tinha acontecido, subiu até o primeiro andar, saiu abrindo as portas até encontrar você. Implorei para que ele me ouvisse e que ao menos deixasse que você dormisse até de manhã. Sebastian te pegou no colo e você se aninhou a ele. Ele me pediu para que nunca mais voltasse tirá-la dele, que nem sequer ousasse. Que você tinha uma família.
  - Sebastian me afastou de você? É isso que está me dizendo?
  - Ele te amava muito. Não queria que eu tirasse você dele. Eu entendi que não podia entrar na sua vida de repente, você já tinha uma. Então pelo seu bem eu não insisti, deixei que ele te levasse. Muitas vezes eu pensava em ir te procurar, mas comecei a ficar com medo de que você me odiasse. Fui tão covarde.
  Eu levantei da cadeira e a abracei.
  - Você não foi covarde. Eu nunca odiei você. Nunca. 
  - Me perdoe, Katherina. Me perdoe.
  Eu enxuguei as lágrimas dela.
  - Não há o que perdoar. Você não fez nada de errado.
  - Você é tão boa.
  - Eu sou justa. Mas minha vida não foi fácil. - eu disse - Desde pequena eu sofri, a Liz sempre deu o melhor dela para ser horrível comigo. Ela sempre me odiou, sempre fez questão de me machucar. - e eu contei a ela tudo que me aconteceu durante todos esses anos, depois que comecei a desabafar sobre coisas que jamais contei a ninguém, nem mesmo ao Caíque - não consegui mais me calar - e terminei contando minha história com Diego, a aposta, a briga com Camille e com Liz. A minha fuga de casa, terminei abraçada, chorando e soluçando com ela.
  - Eu sinto muito que tenha passado por tudo isso. Aquela megera não tinha o direito de fazer o que fez com você.
  Eu tinha contado tudo, desde a primeira carta do dia das mães que escrevi para Liz e ela rasgou na minha frente e gritou comigo dizendo que não era minha mãe, até todas as humilhações, o braço quebrado, as surras que ela me dava sem eu ter feito nada.
  - Ela me culpava por tudo. E eu nem sabia porquê. - eu falei soluçando - Eu só queria que ela me aceitasse.
  - Sebastian sabia? - perguntou minha mãe.
  - Não. Eu nunca tive coragem de dizer a ele tudo que ela fazia comigo. Ela nunca escondeu seu desgosto por mim, mas nunca mostrou a ele o quanto era ruim. E eu nunca falei nada porquê sempre me sentia um fardo para ele, eu sou uma responsabilidade dele, eu não queria causar mais brigas entre eles, nenhum problema. Então fui aguentando tudo, mas tem um limite de dor até onde um ser humano suporta.
  - Meu amor, você suportou muito mais do que qualquer pessoa suportaria. E eu sou culpada de seu sofrimento. - disse ela de forma amarga.
  - Não, não. A única culpada é ela.
  - Mas isso não vai ficar assim. Eu vou com você e ela vai ouvir umas boas...
  - Daphine, - eu a interrompi - eu não vou voltar.
  - Não vai voltar?
  - Me expressei mal, não vim procurar você pensando em morar com você, não mesmo. Minha cota de fardo esgotou. Eu só queria conhecer você, mas depois daqui eu vou embora.
  - Para onde?
  - Eu não sei.
  - E seu pai?
  - Eu já atrapalhei demais a vida dele.
  - Acha que ele não está preocupado? Ele ama você, Katherina. Se ele achasse você um fardo como diz, acha que ele teria vindo furioso buscar você quando te levei para longe dele?
  - Eu vou avisar que estou bem. Mas só quando tiver de ida. Não posso viver mais com eles. Não aguento mais.
  - E é só por conta dos problemas de casa ou também os problemas do coração?
  Ela se referia ao Diego.
  - Estou fugindo de todos os problemas. Estou cansada deles. - foi o que respondi.
  Olhei a hora no relógio da parede e me sobressaltei ao ver que já passava da meia-noite.
  - Já tomei muito do seu tempo. É melhor eu ir. - falei levantando.
  Ela levantou-se também.
  - Está tarde, venha para minha casa comigo.
  - Acho melhor não. Já abusei demais de você.
  - Por favor.
  - Eu soube que é casada, que tem filho. Acho melhor não incomodar.
  - Você não vai incomodar. Meu marido, Isaque, sempre me deu apoio caso eu tomasse coragem para falar com você e o Ben, ele ia amar conhecer a irmã.
  - Tem certeza?
  - Absoluta. E você já está com suas mochilas. É tudo que trouxe?
  - Sim.
  - Então não há problema. - disse ela simplesmente - Você vem comigo, a gente pode conversa mais.
  - Eu não sei não...
  - Por favor, filha. Venha comigo.
  Eu me sentia cansada, mas me sentia feliz. Era a primeira vez após todos os acontecimentos terríveis que caíram sobre mim que eu realmente me senti assim. Eu tinha conhecido minha mãe, e ela tinha me explicado tudo. Ela não tinha me abandonado. Mas ainda tinha tanto para saber... Tanto para assimilar...
  Suspirei e depois falei:
  - Tudo bem. Mas não se preocupe, não vou abusar da sua hospitalidade, amanhã mesmo vou embora.
  - Se depois de conversamos, e de você dormir, descansar e acordar ainda quiser ir, eu não vou te impedir.
  - Obrigada! Obrigada m...
  - Pode me chamar assim, eu sonhei com esse momento. Por muitos anos.
  - Obrigada, mãe.
  - Eu que agradeço a você, minha filha.
 

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