Vida que segue

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Três anos atrás

A chuva cai contínua e impiedosamente, enquanto dirijo o meu carro por uma estrada do Texas, perto da fazenda da minha avó, que está sentada ao meu lado, no banco do passageiro, folheando uma revista qualquer, enquanto relâmpagos iluminam a noite que se estende do lado de fora.

Os vidros das janelas estão abaixados cerca de um centímetro e, com isso, um vento gelado e também alguns teimosos pingos de chuva entram por elas. Eu ate as fecharia por completo, se o ar condicionado do carro não tivesse quebrado há uma semana.

Enquanto dirijo, mantenho os olhos fixos na estrada e uma expressão fechada. Cara de poucos amigos, como a Sra. Susan Mills mesma costuma dizer. E eu tenho certeza que ela sabe muito bem o motivo do meu estado de espírito. Ah se sabe...

Estou no Texas há alguns dias, desde que a Universidade de Nova York entrou em recesso e, neste momento, eu e minha avó estamos voltando de um supermercado da região, onde fizemos compras. Ou tentamos, pelo menos. É difícil dizer, já que me lembro mais da discussão que tivemos na seção de enlatados, do que de estarmos enchendo o carrinho com os produtos de fato.

O assunto da discussão? Sempre o mesmo. Meu pai. Ou melhor, a total teimosia da minha avó em não me contar quem ele foi. Sim, porque pelo menos de uma coisa eu sei: meu pai morreu em um acidente de carro, há muitos anos. Ou pelo menos é isso o que minha avó me contou, quando eu era criança e comecei a fazer perguntas sobre minhas origens.

Desde então, eu lhe faço a mesma pergunta: quem era ele?

E a Sra. Susan sempre dá um jeito de fugir do assunto proibido. Ela simplesmente relata o que eu já sei. Que minha mãe, Marie, era uma ótima menina, mas um tanto deslumbrada, que acabou se envolvendo com um cara popular da faculdade e engravidou de mim.

Então, quando minha mãe contou a novidade para o meu pai, ele simplesmente a rejeitou, disse que o filho não era dele, fugiu dela por dias, até se transferir de faculdade e desaparecer do mapa. Enfim, esse tipo de canalhice típica de caras babacas que não assumem o que fazem.

O fato é que mesmo tendo sido um babaca, eu tenho o direito de saber quem o meu pai foi. Tenho o direito de saber pelo menos o nome dele, não tenho? Quem sabe descobrir se eu tenho tios, avós, primos...

Mas, pelo visto, para a minha avó, eu não tenho direito algum, já que ela simplesmente se recusa a revelar o nome do meu pai ou qualquer outro detalhe sobre ele.

E isso me deixa desconfiada, afinal, qual é o problema em dizer apenas o nome dele?

Toda essa recusa faz eu me perguntar outra coisa também: se o meu pai desapareceu do mapa, como minha avó sabe que ele morreu em um acidente?

Quando a confrontei com esta pergunta, há alguns anos, ela ficou visivelmente nervosa e desconversou, dizendo que ficou sabendo por alto, que as notícias se espalharam na época, que alguém contou para ela, porque conversou com não sei quem, que leu a notícia não sei onde.

Ou seja, no que se refere às minhas origens, tudo o que sei realmente é que minha mãe morreu no meu parto. Sobre o meu pai, as coisas são nebulosas e sempre soam falsas. Como se ele não existisse ou fosse de outro planeta.

Estou pensando em tudo isso, quando minha avó tenta me mostrar uma página da revista e pergunta empolgada e toda carinhosa:

— O que você acha deste bolo, querida?

Se tem uma coisa que eu odeio é quando ela finge que está tudo bem entre nós, quando, para variar, não está.

Eu amo a minha avó, é claro, mas a nossa relação não é nem de longe uma das melhores. Isso porque, saber que ela esconde certas coisas de mim, e que ainda por cima subestima a minha inteligência deste jeito, me irrita profundamente.

Trapaças do DestinoOnde histórias criam vida. Descubra agora