Capítulo Cinco: Máscaras

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— O QUE FAREMOS COM os corpos? — indaguei à Zyora ao fitá-la, expectante.

Ao nosso redor e para onde quer que olhássemos, os corpos dos saqueadores estavam espalhados. Suas montarias pastavam junto das nossas num trecho gramado ali por perto. Caía o ocaso sobre os desfiladeiros rochosos de Ehrindor e junto da noite o frio se esgueirava sorrateiro; o vento sibilava nas gargantas rochosas e serpenteantes como se despertasse murmúrios fantasmagóricos de gelar a espinha.

Também ouvia, vez por outra, o uivo profundo e faminto de um ou outro chacal do deserto. Eles farejavam o fedor de sangue e de morte no ar, e reagiam com entusiasmo à possibilidade de se fartarem com carne fresca naquela noite. Naturalmente — e por andar em bandos —, esperava-se que alguns deles se arriscassem a se aproximar de nós antes mesmo que a lua ascendesse no céu.

Mas, surpreendentemente, quem respondeu a minha pergunta foi Mahira.

— Só os deixem para os chacais, já temos problemas demais para lidar.

— Não devemos a eles ao menos a dignidade de um funeral? — retruquei para ela, que deu de ombros.

— Não tratarei cães sarnentos com cortesia alguma, Nysa. E esses homens eram menos do que cães sarnentos para mim — argumentou com displicência e até mesmo frieza, como se as vidas que ceifamos não fossem nem ao menos humanas.

Bufei. Não tinha como dialogar com ela. Zyora se acercou depois de haver recolhido as armas de todos os saqueadores caídos numa pilha de aço gasto e enferrujado.

— Sua mãe tem razão, Nysa — concordou com Mahira. — Não temos tempo a desperdiçar. Nossa batalha nesse descampado pode ter chamado a atenção de outros clãs de saqueadores. Temos que nos apressar e nos distanciarmos o máximo possível desse lugar antes que tenhamos mais do que chacais famintos no nosso encalço.

Isso significava que viajaríamos sem descanso naquela noite, refleti. Fechei meus olhos, contrariada, mas aceitei a decisão de Zyora. Ela estava certa. Era tolice querer oferecer alguma dignidade para aqueles homens e mulheres àquela altura. Um ato tão vazio de significado não redimiria meus erros em Théocras, não apagaria as máculas que carrego no meu corpo.

Zyora, entretanto, não havia terminado e emendou depressa:

— Mas podemos, ao menos, queimar os corpos. Se isso fará com que você se sinta melhor.

Olhei-a, surpresa, e anuí genuinamente agradecida pela sua consideração pelos meus sentimentos e isso transpareceu no meu rosto. Se era o melhor que poderíamos fazer, eu não discutiria com ela. Zyora se virou, afastando-se depressa.

— Arranjarei alguns arbustos secos para alimentar a fogueira. Empilhe os corpos — instruiu-nos.

Olhei para Mahira, que deu de ombros, pouco disposta a arrastar uma dezena de cadáveres pela terra. Resolvi começar mesmo sem ela, pegando nos braços do primeiro cadáver com o qual cruzei, arrastando-o até outro mais próximo e ajeitando-o por cima com o mínimo de dignidade. Movi-me para outro cadáver, até que fui surpreendida por Mahira, que apareceu para me ajudar, auxiliando-me a carregar pelas pernas o corpo pesado de um homem robusto.

— Você não tem que fazer isso — ela me disse, olhando-me nos olhos. — Não precisa provar para ninguém que é boa, Nysa, muito menos convencê-los de que é piedosa e generosa. Isso não passa de uma ilusão, acredite em mim.

— Foi por isso que desistiu de tentar, Ieha'nai? — inquiri-a num tom seco, mas isso não pareceu ofendê-la.

— Sim, foi por isso que parei de tentar sustentar uma fachada boa e amável para as pessoas. Sabe por quê? Porque conheci todas elas a fundo, e percebi que nenhuma delas era digna do meu esforço, da minha consideração. Eram todos mesquinhos, egoístas e cruéis sob as máscaras benevolentes que usavam. Então parei de esconder a minha fúria e a minha ambição, parei de sentir vergonha desses sentimentos; tornei-me o oposto deles ao expor a minha verdadeira natureza. Porque me cansei da hipocrisia e da falsidade, Nysa.

Nysa - A Mensageira de TorandhurOnde histórias criam vida. Descubra agora