MEU PASSADO OBSCURO SEMPRE me perseguiria para dentro dos meus sonhos. Todas as noites, todas as vezes em que fechasse os meus olhos e permitisse que as sombras me abarcassem eu seria lembrada dos meus erros como um tipo de penitência. E não foi diferente daquela vez.
Assim que peguei no sono, a escuridão espalhou-se como uma peste pela minha consciência e despertou antigas lembranças que eu havia bloqueado há muito, muito tempo: por vergonha e por medo, tanto de Mahira quanto de mim mesma, do que eu já fui capaz de fazer por ela, o quão longe eu cheguei a ir em nome daquela devoção doentia. Tive medo de reconhecer a escuridão ambiciosa e furiosa em minha própria mãe. Eu a amava, à minha própria maneira distorcida e terrivelmente ingênua, e, por isso, me negava a reconhecer que havia devassidão e perversão nela, que o que a movia era uma crueldade leviana e uma sede por poder insaciável.
E eu temi por mim mesma, a sua cria, a filha da sua deturpação como ela mesma me descrevera por várias e várias vezes. A corrupção estava no meu sangue, era uma herança, uma maldição passada para mim através de um legado nefasto, ela costumava me dizer. Nunca indaguei por que ela fazia afirmações como essa naquela época. Nunca procurei entendê-la, e mergulhar nas suas sombras me aterrorizava como quase nenhuma outra coisa em todo o mundo.
Ainda assim, eu a amava. E a idolatrava, adorando o chão no qual seus pés pisavam, agradecendo pelo ar que seus pulmões respiravam, e secretamente invejando os lençóis de seda branca que dormiam abraçados a ela na calada da noite. Eu vendi a minha própria a ela, como disse à Zyora, e tive que provar a minha lealdade e o quão séria estava sobre o meu juramento mesmo antes que deixássemos Astradh.
Comecei por levar bilhetes a um homem cujo rosto eu jamais vira, bilhetes que marcavam o local e a data de seus encontros secretos e proibidos com Mahira. Eu lembro que me esgueirava por uma passagem apertada e baixa do palácio para ir até à cidade e a uma estalagem luxuosa chamada "Ode à deusa dourada" onde ele estaria à minha espera a cada três dias sempre à hora da sexta.
Eu os entregava a um criado ranzinza que o servia, na porta da estalagem, sem jamais lhe dizer uma única palavra e ele tampouco parecia ter vontade de me conhecer. Um dia, desviei-me de propósito do meu caminho na volta de uma dessas escapadas, e me escondi atrás de alguns cestos empilhados de palha trançada numa barraca que ficava de frente para a entrada da estalagem. Tinha lido o bilhete anteriormente e, por isso, sabia que Mahira vinha ao encontro dele dentro de pouco tempo.
No horário marcado, ela surgiu no fim da rua; atravessava um mar de gente suada. Vinha disfarçada, com uma túnica cinza simples e sem adornos, e um lenço fino índigo enrolado ao redor do cabelo prateado. Ela olhou em derredor por várias vezes, assegurando-se de que não havia sido seguida e nem reconhecida, e mais que depressa se esgueirou até a entrada da estalagem.
Esperei por horas até vê-la atravessar a porta de novo, mais uma vez se embrenhando na rua cheia de gente com o lenço bem apertado ao redor da cabeça. Um tempo depois, o criado ranzinza que recebia meus bilhetes também apareceu, mas acompanhado de um homem robusto de pele morena e barba negra, que usava um turbante colorido sobre a cabeça e uma longa túnica debruada. Tive apenas um vislumbre do seu rosto, mas o segui com os olhos de qualquer forma até vê-lo desaparecer no fim da rua, onde um grupo de homens fortes o cercou, ajudou-o a montar seu garanhão castanho e o escoltou na direção dos portões da cidade.
Mais tarde, eu descobriria que aquele homem com quem ela se encontrava regularmente era ninguém menos do que o rei de Asther. Há alguns meses, ele tinha iniciado uma campanha para conquistar Torandhur, a minha terra natal. Mas, antes disso, veio à corte para negociar acordos comerciais com o rei Anthor. Um banquete farto foi preparado para recebê-lo. Comida foi servida em travessas de ouro e de prata, vinho foi servido em taças incrustadas com joias, mulheres dançaram em meio a uma nuvem de perfume e de incenso. Mas não para agradá-lo, não, o objetivo era muito claro mesmo para uma criança como eu: mostrar como éramos superiores, mostrar como as deusas nos favoreciam.
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Nysa - A Mensageira de Torandhur
FantasiaSequência de Nysa - A Campeã de Asther SPOILERS DO PRIMEIRO LIVRO Nysa sobreviveu às sangrentas arenas da cidade de Théocras e triunfou como a sua campeã. Graças a isso, atingiu o objetivo pelo qual lutou durante anos e conseguiu libertar a sua mãe...