Capítulo Quarenta e Sete: Sob a Chuva

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CAVALGAMOS SOB A CHUVA INTENSA ATÉ OS PORTÕES da cidade, acompanhados o tempo todo pelos homens do capitão Uhrias, que se separou de nós por um momento para levar Ahdeh para casa — e para sua mãe — depois de prender as rédeas de Vento Prateado na sela de outro soldado.

— Continue sem mim, Majestade — ele instruiu. — Eu os encontrarei novamente no palácio.

Assim, prosseguimos. A tempestade repentina esvaziara as ruas de Théocras e fizera a grande maioria dos comerciantes recolher as suas mercadorias e barracas às pressas para esperar o mau tempo passar. A chuva fria encharcou o meu vestido e o meu cabelo, tornando-os pesados e colando-os ao meu corpo.

O garanhão de Sarghan manteve o ritmo sem se cansar, levando-nos cidade acima até a colina onde o palácio erguia-se imponentemente. Eu continuava abalada pela proximidade de Sarghan. Não ousava mover um músculo que fosse por receio de tocá-lo, mas a sensação do seu corpo encaixado no meu deixava-me com os nervos em frangalhos.

— Mais cedo, no templo... Eu queria te perguntar algo, Nysa.

Ouvir o som da voz de Sarghan tão perto causou arrepios na pele dos meus braços que nada tinham a ver com o frio da chuva. Quando ele não prosseguiu, os cascos do garanhão batendo nas pedras da rua continuamente, tomei a iniciativa de indagá-lo.

— Perguntar-me o quê, Majestade? — Lambi os lábios, inquieta.

Sarghan fez o seu garanhão virar em uma rua com habilidade, mantendo o domínio sobre o animal mesmo com toda a água que escorria pelas pedras das ruas íngremes e com os relâmpagos que clareavam o céu à distância.

— Venho querendo te perguntar isso já tem um tempo, na verdade — ele recomeçou e me deixou mais nervosa. — Você está diferente. Muito diferente da Nysa que conheci — enfatizou. — O que aconteceu de verdade em Torandhur, para que você mudasse tanto em menos de um ano? Antes, você costumava agir com audácia e irreverência na corte. Mesmo perante os adversários contra os quais competia jamais desviava o olhar ou se permitia ser intimidada. Nem mesmo os grilhões do meu pai apagaram o fogo apaixonado que eu via queimar em você, Nysa — Sarghan fez uma pausa, ponderando. — Agora, no entanto, quando olho nos seus olhos tudo o que eu vejo é tristeza e solidão. A atitude desafiadora e confiante que eu costumava enxergar em você... se foi. E eu não consigo mais ignorar que existe algo que você hesita em me contar.

Como dizer a Sarghan que a mesma tristeza que ele via no meu rosto quase havia causado a minha morte em Torandhur? Que eu ainda sofria pela perda da minha segunda alma e que a lacuna deixada dentro de mim por Cadius jamais voltaria a ser preenchida? Ele havia sido o meu guia, a voz da minha consciência e, por vezes, o meu próprio coração. Viver sem Cadius era como estar morta às vezes. Ou ao menos era assim que eu me sentia.

— Perdi... uma parte de mim em Torandhur — admiti com pesar, permitindo-me sentir aquele sentimento de luto. — Um pedaço de mim se foi, e nunca mais vou poder reavê-lo. Foi a punição que sofri por desobedecer as deusas e me deixar ser manipulada por Mahira. Fui punida, Majestade, e mereci o castigo que recebi. O que vê agora é o resultado dessa dura lição que aprendi. Se hoje sou mais humilde ou melancólica a razão deve-se a isso. Nada mais.

— Punição? — Sarghan ecoou, aturdido. — É por isso que o seu olho esquerdo se tornou verde como o outro? Foi a primeira coisa que chamou a minha atenção quando nos reencontramos naquela noite, no meu quarto.

Assenti sem oferecer mais palavra alguma; não podia revelar mais da minha aflição ou desnudar mais a minha alma para ele. Sarghan pareceu compreender e aceitou o meu silêncio taciturno. Continuamos a subir uma grande ladeira. Apesar das pedras lisas e molhadas das ruas, a montaria de Sarghan levava-nos para cima sem dificuldades. Com o silêncio se aprofundando entre nós, contudo, decidi ceder e me explicar melhor.

Nysa - A Mensageira de TorandhurOnde histórias criam vida. Descubra agora