𝔒𝔫𝔷𝔢

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Um mês após o rompimento do laço, Adara tropeçava pelo cruzeiro, limpando o convés dia após dia. A pior parte não era sequer esta. A féerica desejava arrancar os próprios ouvidos diante dos comentários que ouvia, e tentava diariamente ignorar as palavras sujas que os machos ao seu redor cuspiam entre as risadas. Seu pai a enviara pra longe, com a sugestão de ninguém menos que Lady Cassandra, sua amiga fiel.

Sua dama lhe observava no porto, com mágoa refletida nos olhos marejados. Adara sabia lá no fundo, o quanto doía a ela ter de tomar aquela decisão. Pra proteger. Talvez, esse foi o maior ato de amor que já lhe fora dado. Sua dama a amava tanto, ao ponto de enviá-la pra longe, correndo os mais profundos perigos porque sabia que ela não seguiria em frente ali. Não em casa, não naquele jardim e naquele reino. Foi quando decidiu que partir seria a melhor opção. Dando as costas ao seu reino, ao seu povo e tudo que mais amara, dando as costas ao seu parceiro, partiu, sem olhar pra trás, sem compreender porque ela confiara tanto em enviá-la sozinha. Mas ela entenderia naquele dia.

Ao por do sol, retirou-se rumo a cozinha. O mais perto de conforto que conseguia encontrar. Kalyssa, uma escrava e cozinheira jovem que deveria ter em média, 700 mil anos de vida, estava atrás do balcão. Adara não sabia exatamente a história dela, as poucas vezes em que conversavam, trocavam pouquíssimas palavras. Formulavam algumas perguntas e respostas, e nada mais que isso. As vezes, isso doía. Não apenas por se sentir sozinha, mas porque sabia exatamente quem a escrava fazia de quem se lembrasse. Mas pela primeira vez, não conseguia formular nenhuma pergunta, nem mesmo desejar uma boa manhã ou dejejum. O rosto da féerica loira estava roxo, com o olho que a dias atrás era do mais belo azul, agora estava inchado e em um tom de rocho horrendo. Adara sabia que ela não conseguia abrir ou ver qualquer coisa. A bochecha suave e delicada agora estava em tons de vermelho e preto, combinando com o corte em seu lábio. No entanto, tudo que a féerica fez foi sorrir delicadamente, como se fosse uma situação constrangedora e embaraçosa. - O capitão está de mau humor hoje.

Sussurrando um sinto muito, pegou a bandeja e se retirou as pressas, sem conseguir ter qualquer reação diante daquela situação. Pelos deuses, o que fizeram com aquela garota? Algo crescia dentro de Adara conforme ela andava até a mesa. O que quer que fosse, subia pelas suas veias, crescendo dentro do peito e retumbando. Com as mãos firmes, serviu o jantar, garantindo que houvesse fartura na maldita mesa. Que comessem até explodir, pensou. Foi quando sentiu. Sentiu uma mão grossa e áspera deslizando pela sua coxa, descendo e subindo no ritmo de uma risada rouca e o cheiro do álcool. Com um zumbido em seus ouvidos, ela simplesmente parou de ouvir, de prestar atenção. Girou a faca de prata em sua mão, acertando e atravessando o pulso antes de chutar o estômago do macho. Adara estava prestes a desferir um segundo soco no outro quando dois féericos a capturaram, puxando-a pelos cabelos e a imobilizando. O zumbido aumentava, e a visão parecia entrar e sair de foco. Adara chutou, deu boas cotoveladas, gritou e até mesmo mordeu. Soltando apenas quando garantiu que havia um pedaço de carne para cuspir. cuspindo no rosto dos machos a sua volta. Um soco, dois. Puxaram novamente seus cabelos, acertando seu rosto na porta de madeira, em uma batida. Ela não sabia como se sentia, não se recordava. Mas não lembrava-se da dor. Foi largada de joelhos em frente ao capitão.

Alguns socos não fugiram do esperado. No estômago, na sua nuca e até mesmo no rosto, fazendo a princesa cuspir o sangue nos pés dele. Mas quando ele puxou seu pescoço e rasgou suas roupas, a puxando pra cima, Adara descobriu exatamente o que crescia dentro de si. ódio. O mais puro e profundo ódio, como nunca sentira em toda sua vida. O ódio que enlouquecia reis, derrubando os mais fortes imperadores, enlouquecia féericos e os levava as mais sangrentas batalhas. A féerica gritou, com luz explodindo dentro do cômodo. Caída de joelhos, olhava a cena a sua volta. O zumbido finalmente havia cessado. Silêncio. Haviam dois corpos carbonizados, restando apenas a carne, agora queimada e escura junto aos ossos que jaziam no piso de madeira. O capitão, paralisado no chão, queimado e imóvel. Não, aquele não seria seu fim. Ele merecia sofrer. Ele merecia mais. E com aquele sentimento crescendo, vibrando dentro de si, O poder emanava ainda mais do seu corpo, clamando para que fosse usado. Destrua-o. Cada pedaço.

E a féerica assim o fez. Deixando o que restara corpo na escrivaninha de carvalho como um aviso. Naquele dia, uma cadáver desmembrado não fora a única coisa que ficara naquela escrivaninha, mas a sanidade de Adara também permaneceria lá. E Puxando duas lâminas da mesa, partiu jurando vingança a todos que ousaram rir. Ousaram silenciar-se, ou até mesmo escolher não ver a violência com Kalyssa. E quando a escrava a encontrou em cima da pilha de corpos, respirando com dificuldade e banhada de sangue, tudo que fez foi limpá-la, trazendo comida em silêncio. Gratidão poderia existir de muitas maneiras, percebeu. Enquanto atirava a pilha de cadáveres ao mar, finalmente descobriu porque Cassandra a enviara sozinha. Fé. Não nos deuses, ou no destino. Mas fé que Adara possuía capacidade pra viver suas próprias batalhas sem a ajuda de ninguém, sem a sombra de ninguém.

E desde então, nunca mais se curvaria a nada ou a ninguém. Nunca mais se permitiria sofrer ou ser humilhada, e nunca mais, repetiu a si mesma, deixaria de ter fé em si mesma. foi quando finalmente, a princesa se tornou a guerreira que sempre fora destinada a se tornar.

Na rampa de madeira, a féerica loira e esbelta agora sorria abertamente, abraçando-a tão apertado que Adara não teve opção se não retribuir. Quando o abraço foi desfeito, Kalyssa tomou suas mãos conforme o vento balançava os longos cachos prateados, que pareciam dançar no ar. - Obrigada. Foi a última palavra que finalmente hava dito, e Adara sabia, que em todo aquele tempo, nunca haviam trocado algo tão sincero. Kalyssa piscou algumas vezes, tentando disfarçar as lágrimas antes de soltar a mão da princesa e partir pela nova terra desconhecida. E agora, Adara seria sua própria capitã.

- Azriel -



O mestre espião prosseguia parado, com os braços cruzados atrás das suas costas, confortavelmente recostados na camisa de linho azul-escura enquanto fitava o piso de madeira do escritório do acampamento illyriano, em silêncio durante o sermão do seu Grão Senhor.

- Sequer consegue me ouvir. Pelos Deuses, Az. E sabe porque estou gritando agora? Porque eu me importo. Você é meu irmão, o meu sangue. Não me importo se é egoísta, orgulhoso e fugiu de sua parceria. Estarei ao seu lado pra que chore, grite se for preciso. Mas não espere que eu feche os olhos quando o vejo dia após dia, passando noites em claro, bebendo mais vinho que o habitual e agredindo meus guerreiros com determinação demais pra um simples treino. Não pense que não enxergo as sombras ainda mais densas a sua volta, ou seu silêncio.

O guerreiro continuou mudo, desviando o olhar pra prateleira de livros a sua esquerda. Quando Rhyssand pareceu desistir, ele se retirou, misturando-se as sombras e sumindo silenciosamente. Não é como se o féerico não entendesse a preocupação. Mas os motivos.. eram mais complicados do que o rompimento da parceira. Tudo estava em níveis muito, muito abaixo do que Rhyssand imaginava. Desde que voltara da Corte Oriente, o grão senhor não conseguia permanecer quieto em tamanha agonia. Não dele, mas de sua antiga parceira. Podia sentir a dor dela nas suas veias, seu corpo, sua alma. Pelo caldeirão, ele implorava que lhe apagassem a consciência pra que não presenciasse aquilo internamente. Não demorou muito para que tomasse gosto pelo vinho, tomando algumas doses suficientes apenas para apagar na cama, finalmente conseguindo dormir. Com os dias passando-se, ele havia melhorado. Parecia não sentir mais qualquer sentimento da princesa, e nenhum sinal dela. Sequer um sussurro pelas bocas de Velaris. Não que ele fizesse questão de saber.

Após um mês, foi quando os pesadelos começaram. O espião dormia tranquilamente, quando seu sonho mudou. Encontrava-se em um cenário de sangue. Haviam duas lâminas em suas mãos, e um corpo..pelo caldeirão. Ele tentava desviar o olhar, enquanto suas mãos apunhalavam contra sua vontade, novamente e novamente.

O guerreiro acordou sobressaltado, de volta a sua cama. Levou uma das mãos até o próprio rosto. Estava suado. Afastou o cobertor sem se importar com o corpo exposto, e tentou dormir novamente. Não demorou muito para que o espião descobrisse que se o pesadelo não se repitisse,um novo surgiria dia após dia. Azriel conseguia memorizar em sua mente as poucas vezes que dormira razoavelmente bem. Em todos aqueles dois séculos, tivera 4 sonhos sem sangue, tortura ou campos de batalha.

Em um deles estava em uma viela, parado em frente a uma vitrine, observando uma jóia de prata. O anel era simples, mas delicado. A prata era milimetricamente forjada, com algumas estrelas e pequenas flores ao redor de um cristal dourado.

Agora, o mestre espião encontrava-se deitado, com o anel em suas mãos, observando-o sob a luz do luar que vinha pela janela. O anel de sua parceira.


𝑨 𝑪𝒐𝒖𝒓𝒕 𝒐𝒇 𝑾𝒊𝒏𝒅 𝒂𝒏𝒅 𝑺𝒂𝒏𝒅Onde histórias criam vida. Descubra agora