𝔗𝔯𝔢𝔷𝔢

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100 anos após o rompimento do laço, Azriel estava parado no acampamento, observando os illyrianos em combate um a um, em treinamento. Naquela época, o clima esfriara bastante, tornando o cenário acinzentado. O campo se estendia a milhares de quilômetros, com a grama recém molhada devido a chuva que insistia em cair por quase que o período inteiro do dia. O mestre espião desviou o olhar, mudando sua direção ao sentir a brisa fria em seu rosto. As árvores balançavam secas devido ao clima, com os galhos escuros pendendo inutilmente no ar. O barulho das lâminas se chocando era hipnotizante, enquanto os guerreiros pareciam dançar em sincronia, defendendo-se e atacando uns aos outros. O encantador observava de longe, consciente das sombras que cercavam suas asas e pulsos. Conforme suas visões continuavam, o espião se acostumava ainda mais, aceitando elas. As abraçando. Como fizera com suas sombras. Na noite anterior, percebeu que seus sonhos simplesmente deixaram de existir, dando todo o espaço as visões. Tudo que Azriel fazia era deitar em sua cama, fechar os olhos e relaxar, esperando. Quando um dos guerreiros impulsionou o próprio peso, saltando pra cima da rocha e abrindo as asas prestes a atacá-lo, ele estava pronto.

Suas lâminas se chocaram, e azriel desviou do golpe antes de acertar um soco, girando a lâmina de modo que com o cabo dela, acertasse o pescoço do guerreiro illyriano que agora cambaleava. Mas ele prosseguiu, acertando-lhe com o joelho no estômago exposto antes dar um chute e pisar no soldado jogado ao chão. O barulho dos ossos se partindo era agonizante. E pela primeira vez, uma visão chegara com o espião em plena consciência. De repente, o cenário mudava, e estava em uma guerra, atravessando o campo de batalha como um clarão. Acertando todos os inimigos impecavelmente, os abatendo como se fossem um nada. E não era disso que se passavam? Um nada, comparado as habilidades dele. O cheiro de sangue era sufocante, junto aos gritos que preenchiam o cenário. Mas ele não se importava, abrindo ainda mais espaço com os inimigos que eliminava. Com a visão entrando em foco novamente, o encantador das sombras ergueu o olhar pra Cassian, que parecia chamar sua atenção pra o que ocorrera ali. Azriel não se importava. Simplesmente, não se importava. E mesmo que isso acontecesse, não conseguia ouvir nada além de um profundo zumbido em seus ouvidos. Pelo caldeirão, nunca se sentiu tão esgotado em toda sua maldita existência. Afastando-se silenciosamente com os olhares sob ele, abriu suas asas e partiu em vôo rumo aos céus.

Precisava de tempo pra si mesmo. Se pudesse isolar-se por milênios, escondendo-se nas sombras até que não lhe sobrasse mais nada para o que retornar, o faria sem pensar duas vezes. Em alguns momentos, o espião preferia suas sombras lhe atormentando a aquele sofrimento profundo que se espalhava dentro de si, sem saber de onde surgira. Quando chegou a sua casa, uma cabana isolada de madeira afastada no centro da floresta, o illyriano fechou os olhos ao sentar-se na mesa, pressionando a região entre os olhos que insistia em latejar e doer. Pelos deuses, o que estava acontecendo? Azriel estava cansado, exausto. Não somente das dores e visões que lhe atormentavam. Mas de se preocupar com todos a sua volta. O encantador se preocupava com seu grão senhor, temendo que ele jamais se recuperasse dos horrores de Amarantha. Se preocupava com Cassian, que parecia quebrado dia após dia conforme sua parceira se negava ainda mais, afundando-se nos lugares mais sujos de Velaris. Seus pensamentos vagaram até Adara, de modo que ele recordasse da força da féerica. Uma coisa, o espião não podia negar. Se fossem em outras circunstâncias, a parceria com a fêmea lhe seria uma benção. Ele sabia do quanto ela era forte para cuidar de si mesma, do quanto era capaz. De modo que finalmente, ele não precisasse certificar-se a todo momento que tudo estava bem, que tudo estava salvo. Abaixou a cabeça, agora observando o broche que estava em sua mão com a atenção que merecia pela primeira vez. Era a primeira vez em anos, que conseguia segurar aquele estúpido pedaço de metal sem que precisasse correr e colocar tudo pra fora, com o inevitável sentimento que se espalhava como um câncer dentro de si. A lâmina pequena do centro era cuidadosamente esculpida e afiada, afinando na ponta de tal maneira que se assimilava a ponta de uma agulha. As asas atrás dela, ele agora percebiam, provavelmente foram encomendadas pela princesa por um talentoso artesão, pois eram definitivamente, illyrianas. Azriel deslizou a ponta do dedo por elas, fascinado com a precisão dos detalhes ali. Estava tão distraído, que quando um trovão ressoou noite afora, o féerico derrubou o broche no chão.

Quando abaixou-se para buscar o amuleto e abriu a mão desfigurada, percebia agora um elemento novo. As asas agora se dividiam, como se servissem para zelar, guardar. Proteger o tesouro que estava ali dentro. Novamente, passeou com a ponta do dedo desfigurado por dentro do medalhão. Na prata lisa que havia dentro, havia uma frase gravada em letras delicadas. " Sempre se lembre de quem você realmente é. pra sempre, Adara. "
Maldito que fosse, o sentimento que crescia dentro de si. Azriel praguejou, embora observasse cada letra gravada ali antes de fechar o relicário e colocar o broche na parte interna do seu manto, escondendo-o de modo que o metal pairasse quase que em cima do seu coração, sendo impedido apenas pela camisa de linho-escura. A sensação, pelos deuses. Era como estar com ela. Estranha e familiar. A dor pareceu finalmente ceder naquele momento, junto as sombras que pareciam se dissipar um pouco mais. Pela primeira vez em séculos, ele finalmente voltara a estar bem. O pingente parecia aquecer seu peito, protegendo-o contra o frio que assolava lá fora. Erguendo-se, Azriel saiu da cabana, retornando a casa dos ventos. Enquanto voava, observava a lua que iluminava o céu da sua casa junto as estrelas. O guerreiro desviou o olhar pro lado, perdido nos próprios pensamentos. Talvez, a futura grã senhora da corte oriente fora a única que em toda a sua existência miserável, compreendia quem o espião realmente era, olhava pra ele e não via somente um mestre espião, um encantador ou soldado. Adara conseguia ver sua alma, penetrando tão fundo em partes que até mesmo ele não conhecia até então. E pelos deuses, isso o assustava como nunca.

Mas isso estava acabado, e Adara encontraria um novo parceiro. Ela merecia isso, mais do que qualquer um que ele já conhecera. Merecia aquilo tanto quanto Rhyssand. E ela só seria feliz, quando o encantador destruísse aquele laço, partindo pra tão longe que nem mesmo ela seria capaz de encontrá-lo. Ele seguiria com sua existência, e ela seguiria com a dela. Azriel sabia da grã-senhora que ela se tornaria, e pelos deuses. Se o sultão não a tornasse uma, ele mesmo se ajoelharia e a nomearia como sua grã senhora. Não somente porque era o destino dela, mas porque ela merecia, porque era capaz, porque era forte, delicada e corajosa. Porque era tudo que ele jamais teria.

☀️ Adara, 300 anos após o rompimento.

Enquanto observava o campo de batalha, a féerica tentava ignorar o cheiro do sangue a sua volta. Silêncio, tudo estava tão..silencioso. A calmaria após a tempestade. A féerica tentava limpar o sangue de sua pele, que insistia pegajoso, cobrindo toda a extensão agora pálida dela. Fazia tempo. Muito tempo, desde que Adara não via a luz do sol das suas terras. As vezes, sentia falta do calor emanado, que a aquecia, como se recarregasse toda a sua alma e lhe desse um motivo para seguir em frente. Viver, estava vivendo.

Mas não mais. Adara já não tinha tanta certeza se poderia chamar aquilo de vida. Se muito, poderia alegar que sobrevivia. Sobrevivia dia após dia, noite após noite. Desviando o olhar para o general que a observava de longe, prosseguiu em silêncio, levantando-se da pilha de corpos em que estava sentada antes de partir rumo ao acampamento. Uma arma letal, isso que havia se tornado. Permitindo que qualquer louco o bastante para se aproximar a empunhasse, dizimando milhares. Quando chegou e entrou em sua tenda, suspirou, soltando os longos cabelos que agora batiam em sua cintura. Estava cansada. De muitas coisas, mas pareciam que os deuses testavam sua paciência. Os deuses verão do que sou capaz, pensou. Adara observou o próprio reflexo no espelho, se aproximando ainda mais. Um gato de briga, foi exatamente isso que você se tornou, concluiu ao puxar a espada pelo cabo e puxar todos os fios do longo cabelo em uma única mão, girando a espada e os removendo em um único corte. Adara derrubou a lâmina em seguida, encarando seu novo eu. Satisfeitos? Se não, me arrastem ao mais profundo abismo. Eu não terei medo, eu não tenho medo. Porque o único medo que a antiga princesa possuía, já havia se realizado a muito, muito tempo.

A féerica agora encontrava-se deitada na banheira, com a água em uma coloração avermelhada após a limpeza no próprio corpo. Os cabelos longos jaziam no chão, espalhados pelo tapete, enquanto o que restava, pingava pequenas gotas de água em seus ombros. A cascata negra agora descia pela raiz, passando pelo rosto e interrompendo-se no pescoço da guerreira. Curto, tão, tão curto. Se Cassandra estivesse ali, Adara possuía absoluta certeza que ela estaria em prantos, gritando enquanto tentava recolher os fios, pensando em uma maneira de remendá-los. Aquele pensamento conseguiu retirar uma risada desanimada da princesa, que segurava uma taça de prata e bebericava o vinho em sua própria banheira, observando as lâminas que jaziam em sua cama antes de finalmente sorrir.



𝑨 𝑪𝒐𝒖𝒓𝒕 𝒐𝒇 𝑾𝒊𝒏𝒅 𝒂𝒏𝒅 𝑺𝒂𝒏𝒅Onde histórias criam vida. Descubra agora