Capítulo XXIII

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A luz do sol invadiu o quarto da pequena Sara, anunciando a chegada do novo dia. Rapidamente, a garota levantou-se, colocou uma jardineira e calçou as botas de margaridas que seu pai havia lhe presenteado. Trançou sozinha o cabelo e desceu as escadas arrastando a pesada mochila.

— Bom dia, Moranguinho. Vejo que está animada para o primeiro dia de aula – seu pai lhe sorriu, virando-se para ela e derrubando algumas peças de alumínio que estavam sobre a mesa. — Oh, veja a bagunça que fiz.

— Bom dia, papai – ela correu para lhe dar um abraço. — Não se preocupe, eu pego.

Sara abaixou-se e pegou o bule e as duas tampas de panelas que estavam no chão.

— Obrigado, querida.

Sara sempre havia enxergado o pai como alguém indestrutível, admirando-o mais que a qualquer outra pessoa. Ele era alto e forte, mesmo com seus quase sessenta anos. Seus lábios e sobrancelhas eram grossos, o nariz largo e achatado. A barba começava a esbranquiçar, assim como os cabelos crespos. A pele negra e macia não apresentava qualquer sinal de linhas de expressões, o que o fazia parecer extremamente amigável. Mas aquele pensamento começava a mudar. Ele trabalhava como maquinista em uma linha férrea na cidade vizinha, mas, há alguns dias, havia sido demitido, e ela já imaginava o motivo.

— A sua irmã já acordou?

— Não. Nem o Cris.

O homem colocou as mãos sobre a cintura e riu.

— Alice! Cristian! Desçam já ou irão se atrasar para a escola.

Sara sentou-se à mesa e ficou observando o pai. O homem foi ao fogão preparar o café da manhã e, todas as vezes que tentava pegar o que estava mais à sua lateral, acabava derrubando algo ou até mesmo se queimando.

— Papai, o senhor está com dificuldade para enxergar? – Indagou curiosa. — É por isso que não trabalha mais no trem?

O homem, visivelmente surpreso com a percepção de Sara, pigarreou e foi até a pia.

— É a idade, Moranguinho. Quando a gente envelhece, a nossa visão vai parando de funcionar. Mas nada que um bom e adequado óculos não resolva.

— Por favor, não minta para mim – ela pediu, balançando as curtas pernas que ainda não conseguiam tocar o chão. — É mais sério do que isso, não é? Eu percebo na sua voz.

O homem respirou fundo e abaixou o fogo. Depois, virou-se e caminhou até que estivesse de frente para a filha.

— É, sim. É mais sério do que isso – ele concordou, falando baixinho. — Mas você não pode contar para a mamãe. Nem para ninguém. É o nosso segredo, está bem?

— Tudo bem – ela concordou. — O que é?

— Chama-se retinose pigmentar. É uma doença que vai fazendo com que a visão fique cada vez mais prejudicada com o passar do tempo.

— E tem cura? – Seus olhos brilharam.

— Não, Moranguinho – ele sorriu para não deixá-la tão triste. — Não tem cura.

A garota ficou momentaneamente triste. Não queria que o pai ficasse cego. Haviam tantas coisas que ainda queria que ele enxergasse, que precisaria arrumar alguma solução.

— Quando eu crescer, vou ser uma médica e vou descobrir a cura dessa doença – falou com certa empolgação. — Não vou deixar que o senhor fique cego. E quero que esteja na primeira fila da minha formatura.

O homem riu, emocionado, e a abraçou. Logo, ouviram Alice e Cris descendo as escadas. Alice segurava uma vara com uma meia suja na ponta e a usava para cutucar o irmão, que resmungava e fazia de tudo para desvencilhar-se.

O Filme das Nossas VidasOnde histórias criam vida. Descubra agora